“O trabalho é o amor tornado visível.” A frase do escritor libanês-americano Khalil Gilbran faz contraponto à ideia do labor pelo simples laço da empregabilidade. E ainda: o sentimento de amor e empatia fortalece a firmeza de caráter e vai em maré contrária a ondas de ódio e intolerância mundo afora. O exercício de se colocar no lugar do outro tem o poder de perpassar todas as fronteiras e, no ambiente laboral, consegue unir profissionais em torno da diversidade de culturas e experiências pessoais. É o respeito às diferenças “fazendo toda a diferença” no mercado formal de trabalho.
Na Agência Municipal de Emprego (AME), da Secretaria de Desenvolvimento Econômico (Sedec), vinculada à Prefeitura de Novo Hamburgo, além das demandas tradicionais do dia a dia, ocorre a mediação entre empresas e candidatos estrangeiros, como haitianos e senegaleses. Coletivas e individuais, as entrevistas são muitas vezes realizadas com apoio de tradutores voluntários. “A AME faz esse trabalho específico não apenas para os imigrantes, como também a PcDs (Pessoas com Deficiência), à população em situação de rua e a outros candidatos que estão enfrentando maior dificuldade de inserção no mercado de trabalho”, acrescenta a coordenadora da agência, Fátima Fraga.
“Tanto os empregadores quanto os profissionais têm visto com bons olhos a proposta de aproximação e acolhida dentro do espaço da agência”, observa ela. “É interessante notar que a experiência positiva de uma boa colocação profissional chega a motivar novas buscas por contratação de estrangeiros por parte do mesmo empregador.” Fátima Fraga reafirma que a cidadania como questão de humanidade ultrapassa limites territoriais e barreiras criadas pelos mais diferentes idiomas e sotaques.
Confira, a seguir, um pouco sobre alguns dos imigrantes recentemente contratados, de maneira formal, por empresas da região metropolitana e do Vale do Sinos. O caminho contra hostilidades de toda ordem ainda é longo, mas começa-se a desenhar o norte de um tempo de relações internacionais mais integradas ao dia a dia das cidades.
Costurando o sonho senegalês de uma vida melhor
Desde que chegou ao Brasil, há mais de um ano, o senegalês Ablaye M’bengue, 29 anos, rompeu divisas até alcançar a Serra gaúcha, contratado por safra para fazer a colheita de frutas. Antes mesmo da saga por terras brasileiras, e ainda no Senegal, ele fez uma capacitação prática como costureiro em uma empresa de confecção de roupas.
Descrito em seu currículo, o perfil profissional chamou a atenção de uma família empreendedora de Canoas. Hábil na máquina de costura, Ablaye assinou o contrato e e agora faz o fechamento de peças como capas para violões nessa empresa do ramo de acessórios para instrumentos musicais. Ele está há três meses na fábrica. “Eu vim pra cá em busca de uma vida melhor”, diz logo na primeira frase. “Eu acho o Brasil muito bom, mas sinto saudades da família, mãe, irmãos, tia, avó e dos amigos que ficaram no meu país.” Para compensar um pouco a distância de casa, Ablaye conversa com seus familiares pelo Whattsapp nos fins de semana.
De acordo com o empregador do costureiro, o empresário Roberto Madureira, a evolução dele no trabalho e na comunicação em tão pouco tempo, num sinal de empenho, fez com que conquistasse a simpatia de todos ao seu redor. Também é motivo de elogio o fato do jovem ter os valores de honestidade e bondade intrínsecos em sua conduta. “Chega a ser visto como inocente, mas se trata de uma inclinação inabalável em tomar as atitudes corretas”, acrescenta a sócia da empresa, Farlete Madureira, esposa de Roberto.
Filho do casal de empregadores de Canoas, o gerente de compras e vendas da empresa, Vinícius Madureira, diz que a alegria e a tranquilidade de Ablaye são contagiantes. “Trocamos o ‘bom dia’ pelo ‘salamaleico’ e tivemos de aprender mais sobre o Ramadã”, conta o executivo. Vale acrescentar que a expressão árabe “salamaleico”, usada pelos muçulmanos, significa “que a paz esteja sobre vós”. E a respeito do Ramadã, Vinícius comenta que tinham todos de se policiar durante o período de jejum, um ritual do Islã, para não oferecer comida a Ablaye. “Estamos passando por um processo de integração cultural, o que é enriquecedor para todos nós”, conclui Vinícius.
Mais do que trabalho para um casal haitiano
Sócia-proprietária de um tradicional bar em Ivoti, Claucia Möbus se diz animada com o ingresso do haitiano Michel Elysée, 28, em sua equipe de funcionários. Além de contratar também a esposa dele, a Marie Denise Saint Asse, 30, como auxiliar de cozinha, Claucia aprovou tanto a experiência com o casal que já está em processo de seleção de outros imigrantes por intermédio da AME.
Claucia descreve Michel como um colaborador comprometido com o trabalho. “Apesar das limitações na hora de comunicar, por ainda não dominar o português, ele segue direitinho as instruções que damos e realiza as tarefas focado no que está fazendo”, observa. Ela acredita que a realidade sofrida pela qual passaram faz com que se dediquem com afinco para garantir uma vida nova no Brasil. “Receber o Michel e a sua esposa tem agregado bastante à nossa vida”, destaca. “É uma experiência diferente e a gente está muito feliz por poder contribuir com pessoas que precisam de ajuda.”
Uma estudante de Administração de Empresas em seu país
A haitiana Mariaine Antoine Loissaint, 27, trabalha como auxiliar de cozinha em um empório na Avenida Presidente Lucena, em Ivoti, um estabelecimento que combina padaria e confeitaria com armazém e cafeteria. Para a sua empregadora, Salete Baratto, apesar de alguns desafios de adaptação para ambas, especialmente num primeiro momento, a oportunidade de intercâmbio tem se mostrado bastante positiva. “A gente procura falar um pouco de francês, mas ela se esforça para se fazer entender em português mesmo”, observa Salete. “Com a Mariaine, encontramos uma pessoa amigável e prestativa.”
A empresária do ramo gastronômico ressalta que sua funcionária é inteligente e sabe se colocar, pois já chega para trabalhar com um efusivo bom dia. Atualmente, a jovem haitiana e o marido, da mesma nacionalidade, moram em Estância Velha e tem um filho, chamado Dji Frantz Richard Loissaint, que ficou na República do Haiti. “Pretendemos trazer o menino ao Brasil para viver aqui conosco”, acrescenta Mariaine. Ela faz planos para o futuro que vislumbra no Brasil. “Lá, no Haiti, eu estudava Administração de Empresas, agora penso em fazer a faculdade aqui no País de vocês”, anima-se.
Profissional capacitado no Haiti trabalha na construção civil hamburguense
O haitiano Jonius Versaille, 28, trouxe na bagagem para Novo Hamburgo os seus certificados de capacitações profissionais realizadas em uma empresa norte-americana da construção civil. Trata-se de uma multinacional que tem contribuído na reconstrução de seu país. A informação curricular foi o fator que levou a AME a providenciar a intermediação entre Jonius e uma construtora em Novo Hamburgo que utiliza um sistema muito similar ao modelo “made in USA” para a montagem de casas.
A mediação deu tão certo que Jonius foi rapidamente empregado. O jovem conta que perdeu familiares, além de sua casa no Haiti, e que agarrou a chance de mudar de vida no Brasil. “Estou há alguns meses trabalhando em Novo Hamburgo e, inclusive, moro na cidade”, conta com o sorriso de quem não guarda ressentimentos em relação aos dias difíceis.
O sócio-proprietário da indústria de construção hamburguense, o arquiteto Rafael Brentano, conta que a contratação de Jonius por intermédio da AME acelerou o processo de busca por um profissional plenamente apto ao ofício. “Ele demonstrou bastante habilidade no manuseio de ferragens e placas, até pela experiência adquirida anteriormente”, observa Brentano. Vale destacar que esse tipo de edificação confere mais dignidade ao trabalhador. “Como ele fala francês e emprega o inglês, a comunicação não é tão simples assim”, observa. “Mas há um esforço coletivo para que Jonius aprenda o português e a integração de todos não seja comprometida.” Ainda de acordo com Brentano, a disciplina e a dedicação do funcionário estrangeiro se tornaram fatores para o convívio e a produção, que influenciam toda a dinâmica de equipe.
Movimento imigratório para o Sul do Brasil
No Brasil, movimentos de imigração se intensificaram a partir de 2010. Um exemplo é o número maior de haitianos que o País passou a receber depois do terremoto que assolou esse território localizado na América Central em janeiro de 2010. Passados sete anos da calamidade, decorrente de um abalo sísmico de sete graus na escala Richter, o Haiti mais uma vez foi devastado no ano passado com a passagem do Furacão Matthew. Uma considerável parte dos haitianos, assim como senegaleses, entraram no nosso território pelo Acre e depois seguiram em direção ao Sul do País. A língua crioula haitiana, também conhecida como creole, é falada na nação caribenha juntamente com o idioma francês.
Quanto aos senegaleses que estão no Rio Grande do Sul, como eles não costumam falar muito a respeito, acredita-se que vivem um processo de diáspora, por motivos diversos. Boa parte deles ingressou na América Latina pelo Equador, num primeiro momento, para então cruzar a fronteira com o Paraguai, rumo à Argentina e, finalmente, ao Rio Grande do Sul. O idioma materno do Senegal é o wolof, típico da África Ocidental, e há um movimento interno para que seja o mais falado, mesmo tendo o francês como língua oficial.