Empreendedora de Novo Hamburgo é finalista da ExpoFavela RS com a Pretinha Cerveja, um produto artesanal sem álcool que homenageia sua ancestralidade e movimenta o afroempreendedorismo local.
Uma receita familiar guardada por décadas em um galpão simples de madeira, onde as garrafas fermentavam e, por vezes, até explodiam. Um avô metódico, que substituía o refrigerante caro por uma bebida caseira nas festas de família. Foi a partir desse legado que nasceu a Pretinha Cerveja Preta Artesanal, um símbolo de memória, afeto e empreendedorismo protagonizado por Jana Oliveira, moradora de Novo Hamburgo e líder de coletivos negros da região.
Funcionária pública da saúde e acadêmica de enfermagem, Jana encontrou na fórmula do avô Valdemar um caminho para empreender com propósito. Criada para preservar a tradição familiar e abrir espaço para a representatividade negra no mercado, a Pretinha — cerveja preta, sem álcool e adoçada naturalmente — tornou-se um produto único, com identidade própria e cada vez mais admiradores.
“Quis manter o sabor, o modo de fazer e a história do meu avô, mas também provocar uma reflexão sobre o racismo estrutural”, explica Jana, que também é integrante dos coletivos Afroempreendedores NH, Pretas NH e Conexão AIA, movimentos que lutam por inclusão e oportunidades para a população negra no Vale do Sinos.
Resistência e inovação com sabor de memória
A produção segue artesanal e sem conservantes, com validade de até quatro meses sob refrigeração. Jana utiliza garrafas PET por segurança, já que a fermentação pode causar pressão nas embalagens. “No verão fermenta mais rápido, no inverno a gente consegue guardar melhor”, conta. Ela mantém o ritual do avô à risca, respeitando a receita original, sem adaptações, como uma forma de homenagear suas raízes.
A bebida é produzida por encomenda e em lotes voltados para feiras e eventos. “Ninguém consegue deixar quatro meses essa cerveja na geladeira. Quando provam, acaba logo”, brinca a empreendedora.
Da garagem à ExpoFavela: um negócio com DNA periférico
O grande salto aconteceu com a inscrição da Pretinha na ExpoFavela RS 2024, um evento promovido pela Central Única das Favelas (CUFA) em parceria com o Sebrae, Globo e outras entidades. Entre mais de 5 mil inscritos, Jana foi selecionada entre os 100 melhores projetos e, mais tarde, entrou para o top 10 do estado, representando o Rio Grande do Sul na etapa nacional, em São Paulo.
“Eu nem acreditava que ia passar da primeira fase. Quando vi, estava em São Paulo, com tudo pago, hospedagem, passagem, mentorias. E no dia do anúncio das finalistas, eu estava lá no fundo comendo pastel”, relembra rindo. “Só depois que falaram de uma mulher fazendo cerveja artesanal, sem álcool, que caiu a ficha.”
A participação na feira mudou sua visão de negócio. “Até então, eu não me via como empreendedora. Achava que era só uma barraca em feira. Lá eu entendi o potencial que existia.” Um investidor do Mato Grosso, por exemplo, patrocinou a nova arte dos rótulos da Pretinha, o que ajudou a consolidar a marca.
Canudos é potência: o bairro como ecossistema de consumo e produção
Moradora do bairro Canudos, Jana destaca a importância de fortalecer os empreendimentos locais. “Canudos é uma cidade. Um quarto da população de Novo Hamburgo está aqui. A gente consome do comércio do bairro e movimenta uma economia potente, muitas vezes invisibilizada.”
Ela destaca que há uma lacuna de eventos de afroempreendedorismo no município e na região. “Antes tínhamos feiras Black e a Expo Black em São Leopoldo. Agora estamos conseguindo fazer algumas ações em espaços como a Sociedade Cruzeiro do Sul, nos eventos Aquilombados, mas falta apoio para ocupar áreas centrais da cidade.”
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Legado de luta, arte e ancestralidade
Além da cerveja, Jana carrega em seu DNA a veia artística do saudoso tio, Carlos Alberto de Oliveira, o Carlão — artista plástico que dá nome à escola de artes de Novo Hamburgo. “Na família ele era o Beto, supertranquilo, ciumento com os quadros e discos. Uma figura amável e inspiradora. Sua arte está espalhada pelo mundo”, relembra com carinho.
O futuro da Pretinha
Atualmente, Jana concilia os estudos, o trabalho e a produção da Pretinha, mas projeta expandir. “Quero aumentar a capacidade de produção e alcançar novos mercados. Já há interesse de bares e mercados de Porto Alegre. O desafio é estruturar e crescer com qualidade.”
Ela reconhece que o negócio ainda está em fase de maturação, mas vislumbra um futuro promissor. “Ainda não é o momento de buscar sócios, quero consolidar primeiro. Mas sei que a Pretinha é mais do que uma bebida: é uma história de resistência, afeto e empreendedorismo negro.”
A trajetória de Jana mostra como um simples gesto de resgatar a receita do avô se transformou em símbolo de identidade e força comunitária. Em cada garrafa da Pretinha, ferve a ancestralidade de uma família, a potência de um bairro e a esperança de uma cidade mais inclusiva.
Assista à entrevista completa com Jana Oliveira no programa Conversa de Peso, com Rodrigo Steffen:
Entrevista para o programa Conversa de Peso, com Rodrigo Steffen.