Cinco da manhã. O despertador emite um barulho repetitivo e ensurdecedor. José abre lentamente os olhos, senta na cama e desliga o frenético aparelho. Após fazer o sinal da cruz e entrelaçar os dedos das mãos, agradece por mais um dia e pede a benção do Divino. Na cozinha a mulher está com a mesa posta e, enquanto aguarda o marido, prepara o lanche das crianças. José senta-se a mesa e toma uma xícara de café passado com duas colheres de açúcar. Enquanto molha o pão com margarina naquele líquido escuro e amargo, organiza mentalmente as tarefas do dia.
Quando os primeiros raios de sol começam a surgir no horizonte e os galos, ainda tímidos, iniciam a sinfonia matinal, José está pronto para iniciar mais uma jornada de trabalho. O doce beijo da esposa sinaliza o momento de partir. A bicicleta Caloi, ano 72, está aposta esperando seu condutor.
As pedaladas lentas e compridas guiam a magrela em direção ao bairro Rio Branco, onde se localiza a fábrica de calçados femininos Requinte. Assim que chega ao seu destino, José fica por alguns minutos parado fitando a velha casa branca. A pintura descascada revela a implacável ação do tempo. Os finos e compridos filetes de rachadura confundem-se com as trepadeiras e, discretamente, dão a volta no antigo casarão. No topo da fachada o ano 1953, que antigamente servia para marcar com orgulho o início de uma grande e próspera indústria calçadista, ainda permanece com ar imponente.
José bate o cartão, cumprimenta os colegas, leva a marmita à geladeira e veste seu guarda pó azul claro manchado de cola. Já na sua mesa, afia a faca de corte com o charuto de pedra, pega um talão da prateleira do chefe e começa a cortar o couro marrom escuro conforme a referência indicada. Sua função é participar de todas as etapas de construção do sapato.
Da maior para a menor numeração, sempre com a instrução de economizar, ele segue a dança da navalha sobre aquele espesso e duro pedaço de matéria prima. Outros tecidos mais finos entram na fila e, um a um, ganham forma, transformando-se em pilhas de forros e palmilhas.
Por alguns minutos, cai em grande nostalgia ao relembrar o aprendizado do ofício. Seu pai fora sapateiro e tinha um atelier nos fundos de casa. Aos dez anos de idade José começou a ajudá-lo encaixotando os pares de sapatos. Com o passar do tempo, aprendeu a cortar forros e palmilhas. Sempre sendo supervisionado de perto, tomou gosto pelo trabalhou e iniciou os cortes com couro. No ano que completou 16 anos, seu pai se aposentou e encerrou com as atividades no atelier. Foi então que José partiu em busca de emprego.
Naquela época, Novo Hamburgo era considerada a Capital Nacional do Calçado e o Vale dos Sinos uma das maiores regiões coureiro-calçadista do Brasil. Oportunidades de trabalho não faltavam, ainda mais para quem tinha experiência na área. José chegou a ser supervisor de esteira. Mas, desde 2005, a região passa por uma forte crise no setor. Agora, está cada dia mais difícil ser sapateiro.
José está quase se aposentado. Falta só mais um ano, pensa ele, e volta a se concentrar nas suas atividades. Materiais cortados, é hora de serem chanfrados. Agregam-se a eles fitas de reforço, metais, elásticos e os mais variados ornamentos utilizados no modelo. O cabedal está pronto. O calçado é encaminhado para a montagem. A sineta toca e os trabalhadores partem para o almoço.
Na fila do microondas José conversa com os colegas sobre o baixo volume de pedidos. O mercado chinês acabou com as horas extras e as viradas de noite. Está na hora de pensar em trabalhar com outra coisa, mesmo aposentado, ele não pode ficar parado, mas fazer o que? Durante quarenta anos de sua vida sempre exerceu a mesma função. O seu oficio: sapateiro. E dos bons! Em nenhum outro lugar do mundo existem pessoas que conhecem tão bem os detalhes da confecção de um bom sapato como aqui. Pensa ele.
Chega a sua vez. Quatro minutos são o suficiente para aquecer o feijão, o arroz e a carne de panela. José aprecia com gosto a comida da mulher. Quando está em casa sempre repete. Na mesa do refeitório, composta por vinte homens, os talheres movem-se rapidamente para lá e para cá. Quem senta na ponta tem a sensação de estar assistindo a uma dança de palhetas de pára-brisas durante um forte temporal.
As raspadas no fundo do pote indicam fim da refeição e início da pestana. Sobre caixas de papelão ou no refeitório, aqueles mais cansados estiram o corpo e fecham os olhos. Outros se arriscam no carteado.
Uma e meia. A sineta indica que tudo deve voltar a ser como antes do meio dia. O sol a pino disputa um duelo com a força das pás do ventilador. O mais forte vence e o calor faz as testas daqueles homens expelirem gotículas de suor.
O contraforte é preso ao sapato é posto por José no contraforte e a forma, entregue por Pedro com a palmilha de montagem presa em sua base, está pronta para ser selada com a torquesa e o espichador. Logo após a lixadeira entrar em ação está na hora de receber a sola. A colagem só fica uniforme se as duas partes forem para a sorveteira receber forte calor.
José retira o sapato da máquina e o leva para o torno, cola a palmilha, espera secar e dá o toque na escovadeira. E a missão se repete por toda a tarde. Sapato pronto, é a vez de Inácio colocar a bucha de papel de ceda e encaixotar os 100 pares produzidos durante todo o dia na fábrica. Há alguns anos eram mil. Seis horas da tarde. José faz seu trajeto de volta para seu lar.
Ao chegar em casa as crianças param de fazer o tema e correm ao seu encontro. São elas, juntamente com a esposa, que dão forças para José continuar, dia após dia, a sua digna batalha pelo alimento e pelo futuro de seus filhos. José se orgulha da profissão e do seu trabalho, ele ama o que faz. Este sentimento foi passado adiante, assim como seu pai o fez. O filho mais velho já disse: quando crescer quero ser sapateiro, igual ao papai!