Aqueles que precisaram fugir da fome e da miséria que assolava a Europa no século 19 encontraram às margens do Rio dos Sinos uma nova paragem, verdejante e pronta para ser morada de uma nova história. Cunhada pelos imigrantes alemães e por tantos outros que deixaram seus lares para fazer morada na “Manchester brasileira”, a Capital Nacional do Calçado chega aos 97 anos relembrando orgulhosamente o seu passado e mirando as conquistas do futuro, sem descuidar dos desafios do presente.
Com mais de 227 mil habitantes e um PIB per capita de R$ 40,5 mil, Novo Hamburgo viu sua população aumentar 2.570% neste quase um século. Em 1927, eram apenas 8,5 mil moradores. No entanto, o desenvolvimento econômico e a localização estratégica fizeram com que a cidade continuasse a receber imigrantes — de perto e de longe — por toda a sua trajetória.
De acordo com o professor e historiador Paulo Daniel Spolier, autor do texto sobre a história do município no portal oficial da prefeitura, no início do século 20, com uma indústria consolidada e uma economia diversificada, faltava a Novo Hamburgo a possibilidade de regular e projetar de forma autônoma seus passos. “A sede do município, São Leopoldo, deixava muito a desejar às pretensões das camadas dirigentes da economia hamburguense. Faltava luz elétrica, calçamento, obras públicas de saneamento, enfim… faltavam estruturas básicas para o desenvolvimento da economia local, dificuldades que poderiam ser sanadas, de acordo com os emancipacionistas, pela separação de Novo Hamburgo e Hamburgo Velho de São Leopoldo e a constituição de um novo município”, lembra.
A partir de 1924, tentativas de conquistar a emancipação via aprovação do Conselho Municipal de São Leopoldo são feitas pelo Comitê Pró-vilamento, sem obter sucesso. A Comissão Emancipacionista — formada por João Wendelino Henneman, Bertold Rech, Guilherme Ludwig, Ernesto Moeller, Julio Kunz, Carlos Dienstbach, André Kilpp, José João Martins, Arnaldo Coelho, Pedro Adams Filho e Leopoldo Petry — manteve viva a chama autonomista na comunidade, enquanto articulava a ideia politicamente junto às autoridades estaduais.
Spolier lembra que o desligamento do município- -mãe e a autonomia de Novo Hamburgo só foram conquistados por meio da interferência direta do governador Borges de Medeiros que, através do Decreto 3.818, de 5 de abril de 1927, dava a Novo Hamburgo a condição de município.
Para contar essa história em detalhes, o jornal O Vale apresenta um conteúdo especial sobre o aniversário de Novo Hamburgo que tem, como fio condutor, pequenos trechos do hino do município, composto por Délcio Tavares.
Foram uns poucos imigrantes
Em busca de novas paragens
O município de Novo Hamburgo, emancipado a 5 de abril de 1927, é parte de um processo histórico e está intimamente ligado à chegada dos primeiros imigrantes alemães ao Brasil, explica o historiador Paulo Daniel Spolier. No século 19, a destruição causada pelas guerras napoleônicas atingiu em cheio a população alemã. A escassez de terras e a concorrência da mecanização, entre outros fatores, levou grande parte do povo a níveis extremos de pobreza. Migrar se tornou uma das poucas alternativas para sobreviver.
Aliado a isso, a vinda de braços estrangeiros fazia parte de uma estratégia do recém-criado Império do Brasil para guarnecer a atribulada fronteira Sul, bem como estabelecer núcleos de produção agrícola no caminho das tropas em trânsito.
Em 25 de julho de 1824, a primeira leva de imigrantes germânicos chegou ao porto de São Leopoldo, antiga Feitoria Real do Linho Cânhamo. A esta primeira leva logo se somaram outras e mais outras, perfazendo um total aproximado de 5.350 pessoas até o ano de 1830, primeiro ciclo imigratório gaúcho.
Para a região onde atualmente se localiza Novo Hamburgo, nomeada à época como “Costa da Serra”, foram reservados lotes compostos por uma colônia de terras, o equivalente, atualmente, a cerca de 70 hectares. A picada da Costa da Serra foi subdividida em 62 lotes.
Segundo Spolier, o lote de 1, localizado na região onde hoje se encontra o Monumento ao Imigrante e a Sociedade Aliança, foi entregue a Johan Libório Mentz, casado com Magdalena Ernestine Lips, naturais de Tambach, na região da Turíngia, desembarcados do veleiro “Germânia” no porto de São Leopoldo em 6 de novembro de 1824, na terceira leva de colonos.
Vale destacar que neste território, no entanto, já havia uma comunidade estabelecida de luso-brasileiros, no Rincão dos Ilhéus, composta por famílias de descendentes de açorianos, chegados ao Rio Grande do Sul a partir de 1752.
O comércio de Hamburgo Velho
Os primeiros colonos alemães que aqui chegaram se instalaram nos arredores do que hoje é Hamburgo Velho, um entroncamento das antigas rotas que seguiam para os campos de cima da serra, para Porto Alegre e para a região dos Vales. Naquele lugar, conhecido com o passar do tempo como “Morro do Hamburguês”, Hamburgerberg, formou-se um núcleo que, mais do que uma comunidade agrícola, se transformou em entreposto comercial para o escoamento dos excedentes produzidos nas colônias vizinhas, bem como um centro de serviços, concentrando artesãos que vendiam seus serviços para os colonos.
Johann Peter Schmitt é um dos nomes-chave para entendermos a ascensão econômica do pequeno povoado do Hamburgerberg. Nascido em 1801, em Bechenheim, João Pedro Schmitt (a versão aportuguesada de seu nome) montou sua “venda” na casa em que hoje temos o Museu Comunitário Schmitt-Presser, construída por volta de 1830.
A partir da articulação dos Schmitt com os produtores das colônias vizinhas, o comércio passou a ser um centro de escoamento do que era produzido além dos limites da agricultura de subsistência das pequenas propriedades agrícolas da região colonial. Aliado ao seu irmão, Henrique Guilherme Schmitt (morto em 1838, durante a Revolução Farroupilha), João Pedro comandava o fluxo de mercadorias entre a região e os centros urbanos de São Leopoldo e de Porto Alegre, construindo, à época, uma pequena fortuna.
Além dos Schmitt, Hambugerberg possuía entre seus habitantes uma miríade de artesãos e pequenos negociantes que, através do espírito empreendedor imigrante, registrado em tantas outras situações, progrediram e transformaram as feições do povoado: o sapateiro Schaefer, o alfaiate Kohlrausch, o carpinteiro Libório Mentz (filho do pioneiro Johann Libório), o curtidor de couros Nikolau Becker, além da hospedaria de Jakob Kroeff e do primeiro médico da região, Dr. Schönbeck.
A chegada do trem e a criação da “New Hamburg”
Um dos fatores de maior relevância para o desenvolvimento da região, sem dúvidas, foi a chegada do trem. Em 1867, a Assembleia Provincial aprovou o projeto de um ramal que ligasse Porto Alegre à região colonial. Em 26 de novembro de 1871 foram iniciadas as obras, com o primeiro trecho de 33 quilômetros até São Leopoldo, inaugurado em 1874. O restante da linha, até Novo Hamburgo, foi concluída em 1876.
A ferrovia, entretanto, não chegou até Hamburgerberg. A última estação do trecho foi instalada em um descampado, de propriedade da família Schmitt, próximo ao arroio Luiz Rau, em terreno alagadiço com poucas propriedades rurais. A estação ferroviária de Hamburgo Velho seria construída somente em 1903, durante a extensão da ferrovia até Taquara. Em virtude do povoado Hamburgerberg, os engenheiros contratados para a construção da linha batizaram a testa de linha como “New Hamburg”, isto é, Novo Hamburgo.
Em virtude da localização e da proximidade com a estação ferroviária, o desenvolvimento regional se deslocou gradativamente de Hamburgo Velho para a atual região central da cidade, aglutinando grande atividade econômica nas proximidades do trem.
Esta gente aventureira fez o Vale prosperar
O couro e o ofício sapateiro
Conforme o historiador Paulo Daniel Spolier, a atividade artesanal logo tomou maiores proporções e, a partir da especialização em determinadas áreas, formou-se um parque fabril em que a maior característica era a diversidade de produtos. Entre molduras, bebidas, móveis requintados, conservas, balas e doces, cigarros e charutos, ourivesaria e metalurgia, uma atividade se destacava: a produção de artigos de couro.
Em razão da matéria-prima abundante, a nascente economia hamburguense teve, desde a sua gênese, especial cuidado com a indústria do couro e do calçado. Do trato com o couro bovino, centrado na figura de pioneiros no curtimento como Nicolau Becker, até a produção industrial de calçados, cujo precursor foi Pedro Adams Filho, uma parte significativa dos investimentos foi na cadeia coureiro-calçadista, passando pela fabricação de bolsas, malas, cintos, arreios, celas e serigotes. Esta indústria nascente era voltada, essencialmente, para o mercado interno.
A chegada do século 20 encontra Novo Hamburgo e Hamburgo Velho como dois pujantes centros econômicos, o primeiro ainda em desenvolvimento e o segundo beirando o auge de sua capacidade produtiva. Ao final da primeira guerra mundial, em 1918, Pedro Adams Filho começa a vender o produto de sua fábrica de calçados para São Paulo, um feito notável para a época. Em 1912, percebendo o interesse de seus clientes do ramo da fotografia por retratos emoldurados, Pedro Alles monta a primeira fábrica de molduras do Rio Grande do Sul e outros tantos empreenderam.
A “Manchester brasileira”
Com o desenvolvimento da economia industrial, a classe operária hamburguense, de início bastante reduzida em virtude das empresas terem um caráter essencialmente familiar, teve um desenvolvimento numérico paralelo ao setor fabril.
De acordo com o professor e historiador Paulo Daniel Spolier, em função da oferta de empregos, numerosas famílias começam um fluxo migratório, inicialmente tímido, para Novo Hamburgo. Da região de Pelotas, conhecida pela produção de charque desde o final do século 18 e vivendo sua maior crise desde a época colonial, trabalhadores especializados no trabalho de curtimento percebem a alternativa de trabalho que se abre no Vale do Sinos e migram para a região, principalmente para Novo Hamburgo.
Em 1945, a partir da redemocratização, a produção fabril volta a esquentar a economia local, gerando um novo impulso na economia, que abrirá portas para a principal vertente de recursos a partir do início da década de 1960: a exportação de calçados.
A partir de uma iniciativa do então governador Leonel Brizola, uma comitiva de empresários gaúchos visitou os Estados Unidos, em 1960, buscando parcerias comerciais com aquele mercado. Como um dos principais polos de fabricação de sapatos para os americanos havia se fechado com a Revolução Cubana do ano anterior, a possibilidade dos Estados Unidos importarem o calçado gaúcho transformou-se em realidade.
Novo Hamburgo já possuía a fama de cidade rica, a “Manchester brasileira”, mesmo antes das exportações. Com as exportações, o fluxo de dinheiro na cidade se torna incomparável. Em 1963, por exemplo, a arrecadação de impostos do município superava a arrecadação individual de 12 estados.
Novo Hamburgo é um recanto, onde a arte foi morar
Sítio histórico e artístico
No passado, o povoado de Hamburgerber foi caminho de tropeiros e entroncamento de importantes estradas do século 19. Hoje, conhecido como Centro Histórico de Hamburgo Velho, o espaço mantêm vivo os traços da colonização alemã.
As manifestações culturais têm palco garantido no corredor histórico, tombado pelo Iphan, permitindo a preservação de igrejas, casarões em estilo neoclássico e enxaimel, que abrigam espaços de arte de relevante importância para o município, além de despontar como um corredor gastronômico com bares, pubs e restaurantes.?
?Construído em 1890 por Adão Adolfo Schmitt, o casarão em estilo neoclássico, onde atualmente está a Fundação Scheffel, serviu como residência, escola, local de eventos culturais, casa comercial e até como hospital. Inteiramente restaurado na década de 1970, atualmente abriga mais de 400 obras de Ernesto Frederico Scheffel, constituindo-se numa das maiores pinacotecas do mundo de um mesmo artista.
Ao lado da Fundação Scheffel está a Casa Schmitt-Presser, construída na primeira metade do século 19. É um dos mais antigos exemplares da arquitetura enxaimel, sendo uma das únicas no Rio Grande do Sul que ainda conserva todas as características originais. Por esse motivo foi tombada, em 1985, como patrimônio histórico e artístico nacional.
Moradia de João Pedro Schmitt, imigrante do Hessen, região da Alemanha, que atuou como importante comerciante da região e considerado um dos fundadores da cidade devido a sua influência e prestígio local e regional. Atualmente, a Casa Schmitt abriga o Museu Comunitário que remonta um armazém da época da colonização alemã.
Em frente à Casa Schmitt- -Presser está a Casa Lyra, que foi construída na década de 1890 e nela residia o professor e regente Samuel Dietschi, que dava aulas particulares de vários instrumentos musicais e foi, por muitos anos, regente da Orquestra da Sociedade Frohsinn, atual Sociedade Aliança.
A “briga” pelo monumento do centenário
Em 1923, já era visível em São Leopoldo a preocupação com a agenda de festejos do centenário da imigração alemã no Brasil, a ser comemorado no ano seguinte. Nas reuniões sobre possíveis ações para marcar a data, teve início o impasse sobre a construção de um monumento que desse destaque para a data.
Segundo o jornal em língua alemã Deutsche Post, foi necessária intervenção de elementos da capital do Estado para resolver o impasse sobre a construção do dito monumento, já que as comissões hamburguense e leopoldense reivindicavam para si o protagonismo da ação. Desta forma, foram criados dois projetos. O de São Leopoldo, de autoria de Walter Drechsler, celebraria o desembarque dos imigrantes. Já o de Novo Hamburgo teria por foco a colonização.
Enquanto o monumento ao Centenário da Imigração de São Leopoldo foi inaugurado em 20 de setembro de 1924, em Novo Hamburgo, o Monumento ao Imigrante ainda era erguido. A obra foi concluída somente em 15 de novembro de 1927, coincidindo com o ano da emancipação do município.
Neste Vale tão bonito, entre a serra e o mar
Curiosidades
- Mudança repentina de nome
Em 1919, o intendente municipal Gabriel Azambuja Fortuna, embalado pelo sentimento antigermânico da recém-encerrada Primeira Guerra Mundial, decide mudar os nomes das localidades do 2º distrito de São Leopoldo. Em fevereiro, Novo Hamburgo tem seu nome modificado para Borges de Medeiros, em homenagem ao presidente do Estado, como era chamado o governador. Em junho do mesmo ano, Hamburgo Velho passa a se chamar Genuíno Sampaio, em referência ao Coronel do Exército responsável pelo massacre aos insurgentes Muckers, no Morro Ferrabrás, em Sapiranga. A medida causou revolta entre os moradores, que assinaram uma petição solicitando a volta aos antigos nomes, que logo foi deferida pelas autoridades.
- Uma feira agro foi apelo para a emancipação
Dentre as estratégias de convencimento de que a emancipação de Novo Hamburgo era algo viável, uma delas teve um peso significativo. Em 20 de setembro de 1924, Borges de Medeiros inaugurava a Exposição Agroindustrial de Novo Hamburgo. No trajeto, Borges teve uma breve passagem por São Leopoldo, pois seu destino não era a sede do município, mas seu distrito rebelde. Mais do que uma mostra de produtos, a exposição demonstrou a pujança econômica hamburguense.