Para homenagear e destacar um dos principais nomes do jornalismo em Novo Hamburgo e no Vale do Sinos, Aurélio Decker, o Lelo, falecido em 16 de março aos 75 anos, o Jornal O Vale abre espaço para uma coluna de Dejair Krumenan, amigo de longa dada de Lelo. Confira o texto na íntegra:
Foram 18 anos de parceria profissional e neste ano de 2024, fechamos 50 anos de amizade, aprendizado, rusgas, discussões, respeito e admiração. Neste texto que o pessoal do Vale me pediu, era para falar do Lelo e sua trajetória profissional e pessoal. Refleti, li quase todas as homenagens que ele recebeu nas redes sociais que decidi dividir o espaço, com algumas destas mensagens.
Do Rafael Decker, quarto filho: “Sitiados, em nosso sítio. Estávamos até há pouco no galpão, meu pai e eu sentados em frente ao fogão a lenha. Falamos sobre o tal Vírus, claro, mas, falamos muito mais sobre nossos últimos 20 anos vivendo na área rural. Fizemos uma retrospectiva maravilhosa. Curioso essa característica de um dia estar todo sujo, pés pretos, cheirando a fumaça do fogão, e no outro dia vestir terno, gravata e sapato. Fazer a barba e até tomar banho!
Desde pequeno via meu pai assim, creio ser uma cópia (meia boca) desta cara que admiro há tanto tempo.
Gravamos o Programa Plantar Para Crescer, que vai ao ar no canal 14 da NET – Vale TV. Talvez gravaremos amanhã o programa Aurélio Decker Repórter, que também vai ao ar no mesmo canal mas em dia e hora diferente. Hoje nós ficamos juntos o dia todo, aqui em nosso pequeno sítio. Plantamos, colhemos, escrevemos um projeto sobre coleta de água da chuva, buscamos esterco de gado no campo, juntamos folhas no mato para nossos novos canteiros.
Para finalizar este grande dia, apagamos as luzes e olhamos para o céu, noite calma, temperatura agradável, barulho do mar. No ar uma mistura de medo e esperança frente a uma das mudanças mais fortes na história da humanidade.
Quando tudo isso acabar seremos melhores? Será essa a grande oportunidade de refletir sobre o que estamos fazendo das nossas vidas? Creio que sim! Muita coisa vai mudar, aliás, já mudou… Obrigado meus amores por mais um dia perto de vocês. Eu amo vocês! Obrigado Mãe terra por este castigo merecido a todos nós, filhos teus!”.
Do jornalista João Manoel de Oliveira: “Hoje, fui me despedir de um dos grandes seres humanos que cruzaram a minha vida. O cara que me pegou pela mão e disse: – Jornalista não é autoridade. Jornalista pede licença para entrar num palácio e num barraco. Jornalista não é amigo de polícia, nem de bandido. Jornalista não faz conchavo, não aceita presente, não negocia informação, não tem medo da verdade, não é justiceiro, não se vinga, não persegue e não adula. Foi assim, dizendo o que não era o jornalismo, que o @aureliodecker me deu a primeira – e a mais definitiva – aula de ética jornalística.
Ainda no final do ano passado, saiu de Novo Hamburgo para almoçar comigo em Porto Alegre. Chegou pelas 11h e só foi embora no fim da tarde. Ele ja estava doente, mas seguia altivo, perspicaz e sorridente. Devo confessar: eu senti que era uma despedida. Hoje, vi-o pela última vez, mas na minha memória e na minha história, o Lelo será sempre o maior parceiro das aventuras jornalísticas. E foram muitas e intensas e perigosas e vibrantes. Juntos, desvendamos crimes, voamos de asa delta, viramos garis, denunciamos corruptos…
Juntos, vivemos dilemas, vimos dores e vitórias. Juntos, orgulhosamente, nos sentíamos operários da notícia. Obrigado, obrigado e obrigado, Lelo”.
Do primeiro filho, Ismael Decker: “Qual a religião do sr. Aurélio? Foi o que me perguntaram na preparação do velório do meu pai, ontem em Novo Hamburgo. Respondi: olha… na verdade.. nenhuma religião. Fiquei depois pensando, sentindo uma mistura de tristeza por perder ele, me sentindo meio anestesiado, tentando entender um pouco aquele vazio e já uma enorme saudade chegando aos poucos.
Como definir a religião de alguém que não tem crenças em nenhum deus mas que dedicou todo o amor, tempo e energia de toda a sua vida para melhorar a vida de milhares de pessoas que cruzaram seu caminho. O que levava ele a ajudar com todo empenho e paixão, pessoas que ele nunca tinha visto na vida ou ainda, como definir a crença e o que move alguém que se revolta com realidades e situações injustas nas vidas de tantas pessoas, sem medir esforços para mudar tudo isso. E mais que isso, conseguindo sempre o que queria, concretizando e transformando o pequeno pedaço de mundo que ele conseguia tocar com sua energia e amor pela vida.
O que levava ele, há 40 anos, a colocar um morador de rua, com um enorme corte na cabeça, dentro do nosso carro enquanto a gente estava em uma lancheria no centro da cidade, para levar no hospital. Ninguém parava para ajudar, era corte profundo, o carro ficou sujo de sangue, eu e meus irmãos não conseguimos mais comer… Mas não importa, o carro no outro dia estava limpo, nós tomamos café da manhã e aquele homem sobreviveu… talvez não tivesse morrido, mas talvez esse homem tenha entendido que a vida é pesada, te derruba, mas que alguém se importou com ele, alguém ajudou.
Meu pai era extremamente apaixonado, carinhoso, gentil, forte, tinha um talento único em transmitir sentimentos, descrever momentos, formar opinião sobre diversos assuntos, ele se considerava o gigolô das palavras. E para formar opinião você precisa viver, e viver, no sentido mais profundo da palavra. Viver para ele era conviver com os extremos, era almoçar com o governador e dormir com os moradores de rua… Entrar em uma cela e conhecer a realidade de presidiários e depois ter reuniões com empresários, ou caminhar pelo centro da cidade falando com as mais diferentes pessoas.
Caminhar com meu pai pelo centro da cidade era ser parado a cada 100 metros com alguém agradecendo ou pedindo ajuda, perguntando se ele podia resolver um problema do bairro, ou da sua rua, muitos agradecendo por ele ter resolvido algum problema sério, e muitas vezes eram pessoas que já tinham reclamando para a polícia, para a prefeitura… e ninguém resolvia. E isso era sempre assim, por décadas, não foram centenas, foram milhares de situações.
Meu pai conseguiu a façanha de vir de uma origem muito simples e transcender todos os limites, se tornou diretor por décadas de umas das grandes empresas do RS mas nunca usou a sua posição profissional para ter vantagem, para ganhar algo, sempre foi teimoso, devolvia presentes para não ficar devendo favores, para ser livre, para poder opinar, para dizer o que pensava sempre. E falar o que pensava era um dos pontos mais fortes dele: Foi ameaçado de morte por políticos, policiais corruptos, traficantes. Mas nunca teve medo, foi processado algumas vezes mas sempre ganhou, a vida é justa com quem é justo.
Sempre admirei meu pai pelo que ele fazia, mas muito também por tudo que ele não fazia. Meu pai foi a maior prova de que a felicidade realmente vem do amor imenso que se constrói com os filhos, mas muito mais que isso. Aprendi com meu pai que a felicidade vem do amor, do tempo e de quanto você é capaz de melhorar a vida de alguém, de amigos, estranhos, não importa.
Pai essa frase, vai pra ti. A resposta sobre a tua religião pra mim é muito clara. Tua religião se chama Amor pela Vida, e na tua e agora, nossa religião, tu está vivo com todo teu amor e tua gigante vitalidade e isso estará sempre presente em cada filho, em cada detalhe, na maneira de falar, de caminhar e de sentir e ver o mundo. Meus 47 anos de vida foram na companhia de um homem visionário, inquieto, curioso, talentoso, justo, engraçado e corajoso… certamente o homem mais incrível que já conheci e que, por uma sorte incrível do destino, é meu pai. Te amo eternamente!”.
Já estou com saudades, Lelo!