A chegada de trem
O flâneur sacoleja no vagão da “Maria-fumaça”. Seu destino é a estação de Novo Hamburgo. De onde veio não importa. Certo é que está pronto para mergulhar na cidade de tantas alcunhas: Industrial, Manchester Brasileira ou simplesmente Capital Nacional do Calçado.
Ele sabe que a vocação burguesa para a atividade primeiro se expressou nos grandes projetos de construção física: moinhos, fábricas, pontes, canais, etc., e que, no século passado, a grande invenção que fez a força humana triunfar sobre a natureza foi a ferrovia.
O cavalo de aço incendiou a imaginação dos que o viram pela primeira vez… “arrastando sua enorme serpente emplumada de fumaça, à velocidade do vento, através de países e continentes, com suas obras de engenharia, estações e pontes formando um conjunto de construções que faziam as pirâmides do Egito e os Aquedutos Romanos e até mesmo a Grande Muralha da China empalidecerem de provincianismo”.

Os trilhos da gloriosa invenção se esparramaram por várias regiões do planeta, e o Rio Grande do Sul não ficou de fora. Em 1867 a Assembléia Provincial aprovou um projeto autorizando o Estado a assumir uma garantia de juros sobre determinado montante financeiro. Fora dada a largada para a construção da primeira ferrovia gaúcha, e o privilégio coube à zona de colonização alemã, por sua importância econômica e proximidade com a capital Porto Alegre.
Quando o contrato de construção foi assinado com uma Companhia Inglesa, a garantia foi concedida a somente parte do capital e com uma taxa superior à estipulada inicialmente. Os recursos necessários foram levantados por meio de ações, sendo que a parte que o governo garantia foi subscrita no exterior e o restante no mercado nacional.
A construção iniciou em 1871 e em 1874 foi concluído o trecho Porto Alegre – São Leopoldo. Dois anos passaram para os trilhos seguirem em direção a Hamburgo Velho. Entretanto, sob alegação de falta de recursos, as obras foram paralisadas alguns quilômetros antes do vilamento citado. O local era um descampado e ali mesmo foi levantada a estação logo denominada de New Hamburg, certamente do empreiteiro inglês. O centro religioso, social, comercial e industrial era em Hamburgo Velho e quem quisesse ir de trem à capital deveria seguir a pé ou de carreta até a estação na parte baixa.
Em 1880 havia carros de quatro rodas com tração animal, porém a passagem custava caro. Intensificava-se o movimento entre a vila de Hamburgo Velho e a estação do trem. Pouco a pouco, ao entorno dela foram sendo instalados armazéns para depositar as mercadorias a serem embarcadas via estrada de ferro, hotéis, casa de comércio e outros estabelecimentos. Assim, o local carreou um desenvolvimento urbano acentuado.
Quando, em 1899, a linha férrea seguiu para Taquara – passando pela vila de Hamburgo Velho – já havia se consolidada a posição de pólo central no entorno da estação hamburguense. Em 1912 surgiu a idéia da criação de uma linha de bonde entre as duas localidades.
O carro puxado a tração animal partia em frente da estação de trem e subia a rua General Neto até a Bento Gonçalves, seguindo até a praça 20 de setembro, dobrando na rua Júlio de Castilhos e dali em direção a Hamburgo Velho até o Hotel Esplêndido. Como o terreno era acentuado, o desgaste dos animais era freqüente. Poucas semanas bastavam para ter de trocá-los. Posteriormente foi adaptado um motor de automóvel no veículo.
Mesmo assim, o empreendimento não gerou os lucros necessários para seu pleno funcionamento e, em 1915, a companhia suspendeu o tráfego, sendo logo depois retirados os trilhos e os dormentes. Mas se o bonde local teve curta duração, o trem perdurou longos anos.
Em 1927, quem quisesse ir a Porto Alegre poderia tomá-lo nos seguintes horários: 7h15min, 15h22min e 18h55min. Para Hamburgo Velho, viagem em que se gastava aproximadamente dez minutos, havia trem às 10h13min, às 12h17min e às 18h24min, sendo que no primeiro e no último horários o veículo seguia até Taquara.
Em 1928 foi acrescentado o horário das 5h50 min para Porto Alegre e 18h de lá para Novo Hamburgo, possibilitando assim a permanência de quase dez horas na capital e a volta com a “fresca da tarde”.
Pela praxe, tais horários sempre estiveram atrasados cinco minutos em relação à hora oficial. Como a população das cidades do interior tinham por hábito acertar seus relógios pelo da estação local, a situação muitas vezes causou confusão. Em 1935, os relógios foram acertados, mas os problemas continuaram a existir. Um desarranjo na máquina poderia atrasar em até cinco horas a viagem, uma vez que a companhia dispunha de somente duas máquinas em cada sentido.
Pior mesmo era esperar de vinte a trinta minutos no guichê da estação e obter a resposta de que não havia passagem, pois o carro vinha lotado. Se para passageiros faltava lugar, para as mercadorias sobrava espaço. Causa disso era que muitos “capitalistas locais” preferiam remeter suas mercadorias para a capital via automóvel ou caminhão.
A abstinência na utilização da ferrovia era em virtude da exigência de guias impostas pelo fisco federal. Consideravam-na formalidade prejudicial ao negócio, pois desperdiçava tempo. Outro motivo importante era o de a Viação Férrea não aceitar, durante longo tempo, o despacho de mercadorias em embalagens de papelão, pois criam terem eles pouca segurança, obrigando as “firmas produtoras” a utilizarem a caixa de madeira, mais custosa.
Assim, desprezavam-se os vagões ferroviários em prol do transporte rodoviário, mesmo sendo ele não tão veloz nem tão seguro. Tal medida, explorada em larga escala, prejudicou seriamente a renda da Viação Férrea. Se a mercadoria fosse para além das fronteiras brasileiras no Rio Grande do Sul – Uruguai ou Argentina – deveria ser reembarcada em nova composição, uma vez que os trilhos tinham bitolas diferentes, medida preventiva contra invasões indesejadas.
Afora as mercadorias e os passageiros comuns, pelos trilhos da Viação Férrea rodaram passageiros ilustres. Autoridades políticas viajavam em trens especiais. A visita de Getúlio Vargas a Novo Hamburgo, antes da Revolução de 30, foi marcada por intenso alvoroço: “às 13h30min, ouviu-se, a curva jusante, um salvo longo da locomotiva, e, a alguns momentos, a entrada triunfal do comboio à estação; a despeito do calor intenso que reinava, 33º à sombra, a locomotiva resfolegou nos primeiros arrancos e os circunstantes irromperam numa prolongada, expressiva e altissonante salva de palmas”.
Mas o flâneur sabe que os trilhos de trem que foram de extrema importância à comunidade trouxeram também seus problemas. Com o crescimento urbano ao redor da estação, a cidade ultrapassou a divisa dos trilhos e aos poucos foi se ligando aos bairros que ficavam no lado oposto.
O movimento, tanto de pedestres quanto de veículos, aumentava dia-a-dia, ainda mais com a construção da BR-2 (atual BR-116), que passou a ser a porta de entrada natural da cidade. Neste contexto, o leito da Viação Férrea passou a cortar a cidade ao meio, prejudicando o trânsito. Aos pedestres foram fechadas muitas passagens ao longo dos trilhos, através de cerca de arame farpado, aumentando o trajeto para os que moravam do outro lado. Para os veículos que transpunham o leito, o risco era permanente.
Entre tantos acidentes ocorridos, um “carrinho” foi colhido em cheio quando tentava transpor os trilhos, pois os animais desobedeceram; um outro foi projetado a regular distância, ficando totalmente inutilizado, pois o motor estancou seu funcionamento, tendo o dono abandonado o veículo quando vira o iminente perigo se aproximar; um terceiro deu-se com um ônibus de linha que tentava atravessar a estrada e chocou-se com o trem de tal forma que o tanque vazou e explodiu, irrompendo em chamas ambos veículos.
Houve ainda outros acidentes envolvendo pedestres ou animais. Numa ocasião uma senhora caminhava trôpega no leito quando a locomotiva surgiu da curva em grande velocidade e o motorista ainda teve tempo de apitar, mas a anciã seguiu calmamente sua caminhada, pois era surda, e a locomotiva colheu-a em cheio.
Noutra ocasião, um cavalo pastava no leito e foi atropelado, sendo em seguida sacrificado, pois quebrara as pernas. Por fim, houve a da senhora que estendia roupa no quintal que divisava com o leito, quando uma vaca a atacou e a atirou longe, indo parar na frente do trem que, justamente no momento, passava no local.
Além da desatenção dos motoristas, coisa que não ajudava eram as sinaleiras, célebres e arcaicas que não preenchiam sua finalidade e constituíam-se legítimos “fogos fátuos” para os condutores que nelas se fixavam.
Com os constantes acidentes ocorridos nos entroncamentos dos trilhos da rede ferroviária com as ruas da cidade houve apelo de políticos, mas uma intensa campanha, utilizando out-doors e televisão, alertando aos motoristas quanto aos perigos dos cruzamentos, foi feita somente quando se extinguiram as linhas férreas em 1966. O slogan era atraente: “Você pode parar, o trem nem sempre”, mas chegou vinte anos atrasado.
No final da década de 50 e início da de 60, o estado da ferrovia era precário, não tinha acompanhado a evolução desejada. O alto custo de manutenção e renovação das linhas, aliado à falta de verbas extras, melhoramento de rodovias e introdução de melhores ônibus, fizeram com que ela perdesse gradativamente a preferência do público.
Em 1961 já se previa a extinção do tronco ferroviário Taquara-Porto Alegre, coisa que somente aconteceu em 1964. Em seu lugar a Prefeitura obteve autorização para construir uma perimetral. Substituíram assim o tipo de veículo no risco de atropelamento: do trem para o veículo automotor. Houve tentativas e estudos para a vinda de outros tipos de trens, condizentes com os tempos modernos.
Cogitou-se na instalação, na década de 70, do trem aéreo japonês. A composição, com três ou quatro vagões de 110 passageiros cada, se locomoveria sobre um monotrilho em ambos os sentidos, a uma altura de cinco metros do solo, sustentado por pilastras de concreto a cada vinte metros.
Imaginaram até a linha passando pelo leito do arroio Luiz Rau, pois o barulho seria mínimo para as residências localizadas nas margens. Calculou-se em quinze minutos a viagem entre Novo Hamburgo e Porto Alegre.
Outro sonho não concretizado foi a instalação em 1981 de uma linha piloto do aeromóvel fabricado pela empresa gaúcha Coester, que teria como saída de seu itinerário a avenida Victor Hugo Kunz, no bairro Canudos, até a Nicolau Becker, no Centro. O veículo rodaria a 3 metros de altura, impulsionado pelo vento canalizado num corredor sob os trilhos.
Entre o futuro desejado e o passado enterrado, o trem desapareceu da cena hamburguense. A ilustre invenção humana, que fez afluir inúmeras pessoas de todos os lados para ver o veículo andar sem ter burros para puxar, encantando a todos, que fez pensar que teria gente morrendo de ataque cardíaco, que as vacas não ficariam mais prenhes, tal o espanto com a velocidade de 15 km/h alcançada pelo enorme veículo e que fez crianças se emocionarem ao vê-la esfumaceando no horizonte e sonharem que atravessavam as savanas norte-americanas cercado de índios comanches, não teve espaço na Novo Hamburgo moderna.
Num ímpeto de nostalgia, o flâneur desabafa: “Os trens não podem parar, porque são impulsionados pelo coração dos homens que nasceram e viveram ouvindo a música das locomotivas e os chiados da pressão escapando pelas válvulas”.