Num dos bancos da praça
Num dos bancos da praça, o flâneur senta para observar os passantes. Quem sabe com eles consiga perceber melhor os meandros deste local. Afinal de contas, as construções nada são sem as pessoas. Antes de tudo, ele acha necessário entender a importância da praça enquanto palco dos transeuntes.
Novo Hamburgo, uma vez emancipada, desejou construir um ambiente civilizado e, para tanto, precisou de um local onde os sonhos da coletividade se tornassem reais. Nos idos de 1927, o intento da edilidade foi fazer da praça um local símbolo da cidade em transformação. Para tanto, grande parte dos esforços concentraram-se ali.

Até então, o aspecto da 14 de Julho desagradava a todos. Dir-se-ia anos mais tarde: “quem conheceu os potreiros e paisagens que havia na frente da viação férrea, conheceu também os perigosos sumidouros, onde hoje se engalana a nossa vistosa praça 14 de Julho”. Afora a contenção destes anseios gerais, o âmago da metamorfose do local estava na esfera política.
A praça 14 de Julho foi o espaço certo para comícios, campanhas, passeatas, manifestações e quaisquer outros atos cívicos, uma vez que os meios de comunicação ainda engatinhavam na época da emancipação. A praça tornou-se, assim, um espaço da sociabilidade local e, por isso mesmo, a “arte de governar bem o povo” andou ao seu lado, com toda sua carga ideológica.
À época da inauguração lançou-se uma convocação: “o intendente convida a todas as senhoras que se interessam pela praça a uma reunião… o plano de se confiar o cuidado do nosso jardim publico às senhoras da nossa elite, as quais, com seu fino gosto, mais do que qualquer outra pessoa, estão em condições de dotá-lo dos atrativos que o tornarão sempre mais caro aos nossos conterrâneos”.
A praça dita do povo foi ornamentada pela elite local e aos colonos, que tanto a cidade queria esquecer, fora negada tal participação e restrita inclusive suas andanças pelo local: “estando já bastante adiantados os trabalhos de ajardinamento deste logradouro público, avisasse aos proprietários de cavalares e vacuns que, para evitar estragos nas novas plantações, deverão ter cuidado em não soltarem na rua esses animais”.
Não foram mais admitidas situações como estas: “terneira detida… encontra-se recolhida ao pátio do quartel uma terneira de pêlo branco e preto, a qual vagava na via pública”, ou como a do ouriço-cacheiro que “atraído não sei por que encanto quis bancar o cidadão hamburguês… foi-se, porem, mal sucedido, pois o guarda do jardim, vendo-o correr, sem cerimônia, por cima dos canteiros, o que é rigorosamente proibido, aplicou-lhe logo um corretivo, do qual não se levantou mais”.
A estética vinha em primeiro lugar, pois somente com ela seria possível alcançar ia a tão desejada civilização. O desejo foi de sempre se ter agradáveis impressões, tais como esta: “apesar de se terem aglomerado mais de três mil pessoas nos arredores da praça 14 de Julho, não houve nem uma única tentativa de danificar as arvorezinhas recém plantadas… isto mostra o alto grau de educação do nosso povo e o interesse e desvelo em zelar as propriedades públicas confiadas ao seu cuidado”.
Com cada vez mais passantes, a praça tornou-se espaço de sociabilidade. Visitantes tiveram no local uma parada obrigatória. Diante de tanta beleza às vezes não se contiveram: “pede-nos o guarda desse nosso aprazível logradouro que chamemos a atenção de alguns visitantes que as flores nas praças públicas são bens da coletividade, não sendo por isso, permitido aos particulares, apanhá-las”.
Os amantes da cultura das flores encontraram ali o local perfeito para dedicarem-se “ao seu esporte predileto. Muitas senhoras esqueciam suas bolsas e os senhores suas chaves, mas tais objetos quase sempre estavam à disposição na redação do jornal. Quem quisesse sorvetes, sanduíches e bebidas geladas encontraria.
Quem quisesse cuidar da própria estética também: “petit-salon… comunico à minha distinta freguesia que acabo de instalar um bem montado salão de barbearia…. mantenho sempre bom sortimento de perfumaria, nacionais e estrangeiras… atende-se a chamado em domicílio”.
Os cordões carnavalescos dali partiam para assaltar as residências. Um dirigível sobre a vila foi motivo de grande aglomeração na praça: “divisava-se a longo o gigantesco pássaro prateado, prorrompendo a multidão em grande manifestação de entusiasmo”.
Já outros pássaros, como os pombos-correio soltos ali, juntaram um público menor. Como nem tudo foram flores, a estação da Viação Férrea afrontou a estética do local e o agravante ficou por conta dos maquinistas que tinham como procedimento abusivo apitar o silvo da locomotiva no horário noturno. Também depois da hora do footing, na calada da noite, mãos ladras arrancavam mudas de flores, deixando-a desprovida de seu belo aspecto…
Nas décadas de 40 e 50 a praça foi do cronista Ercílio Rosa. Sua visão apurada enxergou tudo, enquanto sua pena sagaz descreveu a sociabilidade do local. Como válvula de escape das atribuições cotidianas, a praça 14 de Julho tornou-se espaço para a prática do footing.
Nesta hora – diria ele – “sentimos uma aragem cheirosa deixada pela jovens que perambulam pela avenida” e como testemunha ocular dos inícios e términos de romances, o centro sentimental da cidade abrigou de tudo: sonhos de grandezas espetados nas curvas de seus canteiros debruados de verde, simbolizando a esperança esperada; abraços e carícias dos namorados, refletindo nas imaginações humanas os desejos objetivos encravados nos sonhos platônicos dos que passam; sonhos que não se realizaram; ânsias de amor correspondido; ilusões desfeitas; esperas impacientes; sorrisos amargos; desejos de libertação; fuga dos desenganos; e outros mais…
Mas enquanto “as mocinhas endomingadas provocam sonhos duvidosos e escassos rapazes falam de namoradas, no fundo da praça certos namorados agem”. Sendo também palco político, a praça abrigou alguns festejos importantes ao longo dos anos 30: comício cívico pró-candidatura Getúlio Vargas-João Pessoa a convite da intendência; visita do próprio candidato com a “mocidade escolar empunhando minúsculos pavilhões nacionais” e com direito a “três filarmônicas que enchiam o ar de sons vibrantes, pontilhados, de quando em quando, pelo fragor dos foguetes que deixavam após si pequenos flocos de fumo alvacento, enfeitando a lâmina azul do firmamento radioso e esplendido”; dali saiu a carreata – “pede-se aos moradores por onde passar o préstimo a fineza de enfeitarem as casas”; as festas da vitória da Revolução de 30, desencadeada tão logo se captara a notícia do levante das guarnições federais no Rio de Janeiro – “incalculável multidão reuniu-se à praça 14 de Junho, tendo então, se realizado um grande comício… terminado o discurso do Major Petry, o povo, não contendo o seu entusiasmo, invadiu o edifício da Intendência, e saiu, dando uma volta à praça 14 de Julho, com o intendente carregado sobre os ombros”.
A par de ser espaço social, e mesmo com a crescente introdução de aparelhos radiofônicos, a praça cresceu como palco para as manifestações político-patriótico-nacionalistas. Nos anos da II Guerra, na qual a vila alemã teve de se mostrar mais brasileira do que nunca, as comemorações da Semana da Pátria foram algo espetacular.
Um atleta conduziu o fogo simbólico até o Altar da Pátria (a pira ardia durante toda semana). A multidão, postada ao longo da avenida principal e na própria praça, aguardava ansiosa para dar seu tributo frenético e entusiasta, com aplausos quando da passagem do corredor.
Quando Berlim caiu, foi feito um comício com vários oradores e um desfile dos manifestantes pelas principais ruas: “a cidade permaneceu festivamente embandeirada… a indústria cessou suas atividades, mantendo-se o povo nas ruas nas mais delirantes manifestações de alegria… o júbilo da população é incontido”.
Na Semana da Pátria daquele ano, o fogo simbólico partiu do Monte Castelo, na Itália, “onde os heróicos soldados da FEB escreveram épicas páginas de bravura”, e atravessou todo o país, “inflamando os corações dos brasileiros de são patriotismo, unindo-os em torno dos mesmos ideais, concitandoos à luta pela grandeza da nossa terra”.
Na praça, onde se encontrava o altar, foram apagadas as luzes, restando somente o clarão do fogo simbólico. Outros acontecimentos políticos se desenrolavam na 14 de Julho, tais como inauguração de bustos, festa do município com desfile das escolas e sociedade, banda de música e multidão nas ruas, panfletagem e discursos inflamados na época de eleições – “paraintendente municipal antes um negro de beiço rachado do que um filho de Novo Hamburgo”; natal da criança pobre, quando várias eram “agraciadas cada uma com seu presentinho”, e outros.
Com o fim da prática do footing, nos anos 60, a praça tornou-se espaço de todos, inclusive dos deserdados da ordem. Por eles, ela passaria a ser considerada decadente e maldita. O flâneur lembra-se de sua condição de errante, sem destino e com o passo despreocupado, como de quem não quer nada, e ele não quer mesmo. Seu único objetivo é montar a cidade da narração, a cada passo de suas andanças, entre o que vê e o que recorda. Por isso, assemelha-se aos personagens típicos da praça.