A praça dos “Imigrantes”
A praça ainda é a mesma, mas para o flâneur ela se transforma num piscar de olhos. Ele sabe que “o espaço urbano realiza metamorfoses de maneira mais intensa do que lugares edilícios”. A natureza modifica-se menos se comparada ao espaço habitado pelo homem e a cidade. Como espaço arquitetônico, é, ainda, uma multiplicidade de formas e tendências.
Sua lei de organização não é única nem permanente. Cada unidade que a compõe relaciona-se às demais unidades, formando um todo cuja ordem é volátil, passageira e efêmera. O que parece desordem é a ordem vigente.

A praça, como lugar central na qual a edilidade concentrou grande parte de seus esforços para tornála local agradável a todos e bem apresentada aos visitantes, seguiu a mesma lei da transformação urbana. Realizando também sua metamorfose permanente, tornou-se espaço peculiar. Agregando as várias fases desta transformação ininterrupta, assemelha-se agora ao típico Mercado Persa, cuja desordem reinante é a ordem em vigor.
A praça 14 de Julho, que passou a ser chamada de “Praça dos Imigrantes”, sofreu em seu aspecto físico a lei da transformação permanente. Desde a emancipação municipal, em 1927, quando somente era um escampado abandonado, até os anos 90, ganhou obras em praticamente todas as administrações municipais. Todas modificações tiveram o mesmo intuito: torná-la agradável àqueles que ali iam.
Diante disto, o flâneur afirma categoricamente: “nestes brumosos dias de julho, em que a natureza perde, em parte, o seu viço e o seu esplendor, as raras flores e os jardins não bailam tanto em nossas fantasias, ou mais explicitamente, não nos despertam tanta atenção como na época primaveril, em que tudo parece renascer… entretanto, ninguém pode ficar insensível à remodelação da nossa praça 14 de Julho… a satisfação encheu os nossos corações ao constatar a metamorfose que ali se verifica”.
Na década de 70, o amplo projeto procurou embelezar todo o centro da cidade, com obras previstas na praça e adjacências. As reformas iniciaram num determinada administração, com a construção do chafariz das águas dançantes e da platibanda de concreto em seu redor. Não inteiramente finalizada, o aspecto do local tornou-se tragicômico: “cercado por todos os lados está mais parecido com um curral do que com um logradouro público”.
A nova edilidade seguiu as reformas e o chafariz poderia ser finalizado dentro do projeto previsto: “um belo lago e um chafariz luminoso, que formará 135 figuras de jogos d’água e luz, vão tornar ainda mais atraente o perímetro central de Novo Hamburgo”.
A fonte das águas dançantes formava várias figuras nas cores violeta, vermelha, verde, amarelo e azul. Como a combinação possibilitava inúmeras figuras diferentes, os autores do projeto afirmavam: “nunca chegará a enjoar, pois proporciona sempre espetáculos diferentes, com a água dançando suavemente ao som de música estereofônica”. Combinava-se assim, de forma maravilhosa, água, cor e música, “num espetáculo emocionante que chega a fazer chorar”.
A população foi receptiva com a novidade: “convenhamos, a fonte luminosa está sendo construída com boa técnica… o teste agradou; as primeiras experiências alegraram o coração do povo… este aplaudiu, bateu palmas, talvez esquecido, naquele momento, de que ele é que as merece, mesmo transformadas na dança colorida das águas… a música lhe traz boas recordações e alegria; ameniza-lhe a preocupação e a constância do trabalho de todas as horas… Novo Hamburgo, cidade industrial, o seu comércio, os operários, mais do que tudo, merecem um espetáculo para os olhos afeitos ao trabalho, descanso para o espírito submisso à operosidade, ao vigoroso cumprimento do dever; e a palma da vitória ao contribuir com as grandes somas para os cofres públicos”.
Na prestação de contas ao final do mandato, destacou-se a retirada da velha estação e o fim da estrada de ferro: “antes uma velha estação, agora uma praça bela e alegre”. As linhas modernas da fonte de água dançantes e uma sequência de plataformas de concreto com dimensões variadas fizeram da obra um verdadeiro marco urbano. O flâneur analisa a transformação por um tríplice aspecto: beleza turística pelo inédito chafariz, estrutura de concreto demonstrando a arquitetura moderna e o novo ajardinamento em meio à selva de prédios que surgiu paulatinamente.
No próprio projeto houve três partes distintas: o centro cívico, onde ficou o chafariz, no qual foi construído um pódium junto aos símbolos da pátria e de onde as autoridade passaram a assistir as paradas nos dias festivos; a área de recreação, no local central; e o centro de informações, constituído por uma construção atípica atrás das bancas e por um relógio-torre erguido pelo Lions Clube.
O relógio, além de fornecer as horas e de tocar música das rádios, de toca-fitas ou de toca-discos, ininterruptamente das 6h30 min às 24h, servia de “instrumento benemérito, pois anualmente são colocadas propagandas cuja renda reverterá às entidades assistenciais”.
Como não poderia deixar de ser, ao longo dos anos 70 e 80, novos projetos foram sendo incorporados ao original. Sobre a casa de máquinas do chafariz foi construída uma concha acústica. Na área de recreação, um bar com guarda-sóis e mesinhas. No afã de parecer-se com a praça São Marcos de Veneza, um fotógrafo deu a idéia de dotar a praça com pombas, pois elas seriam de grande atração turística.
Restrições à parte – “não é qualquer vivente que gosta de receber, do alto, algo que não se coaduna perfeitamente com um penteado todo trabalhado ou mesmo com uma roupa domingueira” – as pombas foram aprovadas, para a glória da criançada e do próprio fotógrafo que passou a faturar melhor com a nova atração. Mesmo a fonte de águas dançantes não durou muito tempo.
Alguns anos depois de inaugurada, a prefeitura limpou sua volta, secando a área onde havia água, e preparou o local para ser um viveiro de peixes ornamentais. Alguns taxistas foram pegos pescando ali com redes feitas de sacos de frutas e arames. Desativado o chafariz no final da década de 70, mas sem a modificação da estrutura original, surgiu a proposta de utilizá-lo como pista de patinação, mas a idéia não se concretizou.
Outra proposta que não vingou, sugerida nos anos 80, foi a construção de um restaurante típico no lugar do quiosque. Outra ainda, já nos anos 90, foi a Rua 24 Horas. Pretendiam fazer da rua situada na face norte da praça, entre a rua 1º de Março e a avenida Pedro Adams Filho, um local aberto permanentemente, com lojas diversas: chaveiro, floricultura, tabacaria, livraria, farmácia, etc., tudo isto integrado com a praça. Apesar da fértil imaginação local, a praça tomou outros rumos. O asfalto e os prédios erigidos de um lado ao outro, a partir da década de 70, acabaram com a bucolidade do lugar.
As pombas reproduziram-se tão rapidamente que se tornaram super-populosas. O outrora recanto romântico passou a maldito: frio, insalubre, insosso e acarpetado de cimento, “só falta um capacete militar sobre a casamata do comando do chafariz”. Nas noites dos anos 80 e 90, prostitutas, travestis, bêbados, cheiradores de cola, mendigos, menores de rua e ladrões tomaram conta da praça. De dia, os engraxates, um mambembe parque de diversão e até os agressivos vendedores do Carnê do Baú.
Os bancos onde, nos anos 30, 40 e 50, sentavam-se os namorados, passaram a ter como proprietários nos anos 90 os deserdados: “tentei sentar num banco, todos estavam livres, mas cheirando a cola e cachaça”. As seringueiras que faziam o resto de sombra cederam lugar ao calçamento de pedra: “elas não são do tipo de vegetação compatíveis com a urbanização”. O flâneur viu a utopia da praça limpa chegar ao fim.
A Imigrantes dos anos 90 transformou-se numa enorme quadra com as mais variadas construções e com os mais variados tipos. A degradação passou a constituir seu índice marcante.
De onde está, faz um relato: “Olhando da Pedro Adams, da esquerda para a direita, tem as bancas, o mais antigo prédio… nos fundos tem o prédio do turismo que mais parece um conjunto de escritórios de contabilidade… aí, aparece o novo prédio da Brigada Militar, quase uma imitação de postos da polícia de Copacabana… mais ao lado um banheiro público, cujo visual parece que foi feito por mim, que não entendo patavinas de arquitetura… perto deste novo banheiro tem aquelas enormes pedras de mármore, cravadas no chão por um movimento religioso e que parecem dois túmulos… aí surge o quiosque cujo prédio lembra uma rodoviária em Tucunduva, mas com mesinhas bonitas, invadindo parte da praça…depois começa o mar de concreto, em redor do chafariz e tem ao fundo a concha acústica e, ao lado desta, aquele banheiro público parecido com o último reduto da defesa do Hitler, nos últimos dias da II Guerra… a praça do Imigrante acaba tendo um mistura de péssimo gosto… esqueci de falar que durante muitos dias, entre o quiosque e os dois túmulos, a ‘Alemoa’ pendura suas roupas para secar… existe ainda a banquinha de revistas, de frente para a 1º de Março, que não é parecida com nada do que falei antes… ainda podemos nos dar por felizes porque a praça não está asfaltada… ainda não”.
Ele lamenta, mas a ex-praça 14 de Julho, posteriormente denominada dos Imigrantes, que era o tão sonhado marco da modernização de Novo Hamburgo, transformou-se num símbolo avesso da urbanização crescente, característica e peculiar, inerente à própria cidade…