A praça “14 de Julho”
O flâneur finca definitivamente os pés em solo hamburguês. Antes de tudo, ele vai descansar da viagem na praça central, onde fica a estação do trem. Sua impressão inicial do local não é nada familiar. Ele está acostumado com as localidades cujo desenvolvimento se deram a partir das igrejas. Ele sabe que a gênese e a evolução usual das cidades brasileiras remonta a idéia de hierarquia urbana: do povoado que ascendeu a vila e posteriormente alcançou um status municipal.
Uma vez tornado município, haveria uma preocupação no uso e distribuição do solo urbano. Contudo, a ordenação e ocupação racional da cidade chegariam tarde. As normas eclesiásticas haviam prevalecido. Isto porque, enquanto povoado, ostentaria uma capela e, em razão de seu crescimento, ascenderia a cura, freguesia e paróquia. Assim, se a cidade crescia, seu crescimento partiria da praça central, onde a igreja tornava-se o principal de seus prédios, sempre na face mais privilegiada.

Mas o caso de Novo Hamburgo é atípico. Até a chegada do trem, em 1876, o que existia era somente a vila de Hamburgo Velho. Esta desenvolvera-se a partir do entroncamento de duas estradas onde se situavam as duas igrejas. A católica, construída no tempo em que o catolicismo era religião oficial, ficava numa parte mais alta do morro. A evangélica, um pouco abaixo.
A malha urbana da vila imbricava-se entre si, formando um labirinto por entre as construções. Como os trilhos ferroviários não alcançaram a vila, uma vez que as obras foram paralisadas dois quilômetros antes, em torno da estação batizada de New Hamburg – aquela em que o flâneur acabara de descer – foram sendo feitas novas construções que passaram a abrigar os depósitos, hotéis, casas comerciais, e residências.
Pouco a pouco, a cidade se transferiu de lugar e a partir da estação formou-se um novo núcleo urbano. Entre a estação e o novo povoado, resguardou-se um terreno que mais tarde seria a praça central. Assim como na vila de Hamburgo Velho, a igreja não fora foco principal para o desenvolvimento urbano.
Em Novo Hamburgo, o epicentro foi a estação do trem. A praça contígua somente mereceu tal denominação quando da emancipação municipal, em 1927, tempo em que todos os esforços da edilidade direcionaram-se ao seu embelezamento. Enquanto cartão de visitas nos anos 30, a praça foi o ponto principal para os visitantes. Nela, eles lançavam seus olhos e recebiam a primeira impressão: “Ora, todos sabemos quanto valem na vida social, como na comercial, as primeiras impressões, por isso é dever do governo municipal providenciar para que sejam boas! ”
A lembrança que o flâneur levará de Novo Hamburgo deve ser uma grata lembrança e uma agradável impressão: “É evidente o valor higiênico-mental dos jardins”. A primeira obra de vulto foi a praça denominada “14 de Julho”. Seu aterramento deu-se cedo, e cedo também foi seu ajardinamento “em estilo moderno”.
O projeto, tão logo ficou pronto, foi publicado em primeira página, para que todos pudessem ter noção de como ficaria o logradouro público principal. A construção e a manutenção dos jardins públicos constituíam “um requisito de estética essencial a todo embelezamento urbano”.
A cidade desejou ser moderna, e ao poder público coube materializar este sonho nos espaços sob sua responsabilidade. O papel da praça sempre fora claro: “deliciará a vista e mesmo o olfato de nossa gente e dos viajantes que por aqui passarem, dando um atestado de bom gosto da administração que vem logrando proporcionar a esta vila um embelezamento digno de qualquer centro adentado”.
No projeto constava a colocação de uma estátua despejando um cântaro d’água no centro do pequeno lago existente em frente à estação do trem, “tal como se vê no logradouro público onde fica situada a intendência municipal de Porto Alegre”. Também um chafariz foi erguido. Seu projeto ficou exposto na vitrina da livraria Hans Behrend.
Concluída a parte estética, passou-se à preocupação com aqueles que freqüentariam a praça. Instalaram-se bancos de cimento armado, postes de iluminação e até um relógio elétrico. Os bancos duraram alguns anos; a administração removeu-os para outros logradouros, o que ocasionou reclames diversos: “torna-se necessário que a prefeitura providencie uma urgente substituição dos bancos retirados, para acomodar o grande número de Exmas. famílias que buscam refúgio neste agradável local nas noites de estio”.
A iluminação tornou-se precária, logo exigindo substituição: “não é das melhores a impressão que se tem, à noite, da iluminação da nossa pracinha; à noite parece um doente, de olhar tristíssimo, esperando a hora fatal”. Como a praça era considerada o ponto chique da cidade, era natural o pedido de aumento das despesas com ela.
Mesmo assim, sua beleza física decaiu em menos de dez anos: “a estética estava mesmo a exigir uma remodelação naquele logradouro”. Haviam descuidado da praça 14 de Julho: “gramado praticamente não existia; os canteiros, com os contornos mal definidos, ofereciam um aspecto lastimável ou quase deprimente”.
Se algumas vezes a praça encontrava-se em abandono, o que privava a população de um local aprazível, em outras vezes as obras procuravam torná-la menos lúgubre: “dentro em pouco tempo teremos um logradouro público digno do desenvolvimento e progresso do nosso município”; o reajardinamento era constante; também as obras no calçamento mereceram destaque.
A praça central foi o local para qualquer administrador dar mostras de seu talento, sabedoria e capacidade. Quase todos iniciaram seus trabalhos ali. “Um levantou os aterros dos canteiros até formar verdadeiras trincheiras; outro os arrasou todos; um terceiro mandou levantar um pavilhão, destruindo alguns canteiros; outro fez construir um botequim; outro eternizou-se pela idéia ridícula de derrubar um chafariz existente defronte à estação ferroviária; um até quis derrubar as belas árvores que já espalhavam sombra, sob o pretexto infantil de serem muito velhas! ”
Bem ou mal, a praça 14 de Julho tornou-se espaço da sociabilidade local: “os namorados fazem seu footing, os intelectuais buscam inspiração, as crianças brincam, o rapazes discutem futebol e os velhos buscam a ilusão da felicidade ao entrar em mais estreito contacto com a vida e com o mundo”.
Para o cronista Ercílio Rosa, ela foi o armazém das aspirações locais nos anos 40 e 50: “é ali que vão sonhar as moças bonitas; os rapazes; as solteironas esperançosas; os velhos românticos cheirando a antigüidades… e toda a população em estado de sonho”. O cronista fez dela seu poço de inspiração: “a praça 14 de Julho, espelho da mocidade local, ostenta em seus verdejantes jardins a pauta poética das flores, inspirando romances na imaginação sutil de toda gente”.
É dele a seguinte descrição da praça central: “O busto de Ruy Barbosa impõe respeito aos que respeitam o direito alheio e a estaçãozinha colonial postada ao fundo ainda suporta, com seus 89 anos, a glória de ser a mais antiga do Estado. E na avenida em frente, os automóveis correm desabaladamente enquanto a multidão jovem se esparrama no vai e vem costumeiro. A praça 14 de Julho é um pequeno mundo onde a gente gasta pedaços de horas, alimentando o sedentarismo dos momentos ociosos postados ao longo do tempo. A praça tem o destino e o privilégio das praças: árvores copadas silenciosas e indiferentes, testemunhando os afagos a as rusgas dos namorados; os começos e os fins dos romances; sussurros de gente idosa e projetos inconcebíveis. Há cochichos nos bancos espalhados pelos caminhos, enquanto as linhas dos canteiros vão tangeando as sensações emotivas dos que se debruçam ao longo dos acontecimentos. E o quiosque que há muitos anos, por certo, foi construído para finalidade, serve presentemente de escritório comercial. A praça é um pequeno mundo. Enquanto a mocidade provoca sonhos duvidosos na avenida, a estaçãozinha colonial enruga seus 89 anos, envolta na rústica cerca-viva separando a praça. E enquanto os automóveis passam velozes pela avenida afora, há quase sempre um sapateiro folgado lá no último banco, aconchegando-se um pouquinho mais à morena faceira”.
Mas entre as diversas remodelações e reformas que sofreu até os anos 70, o logradouro ainda lembrava de longe os primeiros tempos românticos, com bustos de personalidades famosas; jardins limpos e farta iluminação quando em tempo de festa; ipês amarelos que se confundiam com as bandeiras desfraldadas na época cívica; risos de crianças abafados pela banda de música aos domingos.
Sua fisionomia ainda não havia sofrido uma intervenção tão grave e profunda quanto a que ocorreria no final da década de 60. A velha estação do trem, tão chacoteada, desapareceu do cenário junto com os trilhos que separavam a cidade ao meio. Ao invés da praça verde, apareceram os primeiros traços do modernismo: linhas retas e formas definidas, concreto e aparente limpeza… a cidade tornou-se definitivamente um sonho moderno.
Apesar de tudo, o flâneur tem consciência de que “a praça contém sinais, impressões do seu passado, as lutas de uma comunidade… tudo está mesclado, confundido, como um grande quebra-cabeça… ela se apresenta como uma caricatura do velho e do novo, do profano e do sagrado, do público e do privado”.