A velha estação ferroviária
O flâneur desembarca na estação. Acha estranho como uma cidade que se quer toda progresso pode ter uma construção assim. Lê, no hebdomadário “O 5 de Abril” do ano da emancipação da cidade (1927), a seguinte notícia: “Esteve nesta vila o dr. Souto Ribeiro, competente engenheiro da Viação Férrea, o qual veio tratar do estudo dos melhoramentos e embelezamentos que o benemérito governo do Estado pretende introduzir na estação local, cujo edifício e demais benfeitorias, uma vez concluída a praça 14 de Julho, formará, se ficasse no estado atual, um contraste pouco agradável com os arredores, causando uma pequena impressão aos visitantes de nossa terra”.
Logo após a emancipação, Novo Hamburgo iniciou a construção da praça “14 de Julho”, onde se encontra a estação do trem. Para quem quis um local dito moderno, a aparência esdrúxula deste “pardieiro” sempre fora algo complicado. Ter um prédio caindo aos pedaços, em meio a um logradouro totalmente embelezado, foi no mínimo uma afronta.

Por algum motivo, nem a edilidade nem o jornal local (ambos se confundiram no início) se propuseram a capitanear tais reformas no prédio da Viação Férrea. A responsabilidade perante ele terminava nos reclames, e estes não cessavam de acontecer. Alcunhada de “armazém”, “velho barracão”, “velhíssimo casarão” ou “apodrecido casebre”, a estação local foi sinônimo de retrocesso diante do progresso urbano. Seu estado deplorável foi sempre posto em destaque, principalmente nos anos 30 e 40.
Com o aumento populacional e o crescente tráfego entre os municípios vizinhos – “notadamente com a capital” – o movimento no guichê impressionava. Este expressivo número de passageiros convivia com a triste impressão do local: plataforma esburacada, telhado denegrido e furado, congestionamento nas plataformas e corredores em horário de pico, entre outros.
O velho galpão apresentava um aspecto sui-generis contrastando com a praça e com a avenida. Sua parte interna transformara-se num covil de ratos. Na célebre choça era grande a quantidade de buracos cavados pelos terríveis roedores ou outras peculiaridades dignas de registro.
O flâneur se impressiona com o local: “maior, porém, foi o meu espanto, ao deparar com um fardo de couro, cujo invólucro fora roído pela rataria, o mesmo sucedendo com alguns sacos de farinha… evitei fazer maiores sindicâncias com medo de que qualquer demora ali poderia reverter em prejuízo meu, pois muito bem poderiam os ratos se engraçar dos meus sapatos e deixar-me sair descalço”.
Também em dias de calor canicular a estação era tal qual um forno em brasa. Qualquer reforma no prédio seria motivo de vitória. Em 1930 espalhou-se o boato de que se daria a construção de uma nova estação. Obviamente, o jornal enchera-se de orgulho: “O 5 de Abril tem a jactância de dizer ter sido um dos paladinos que se bateram por este inadiável melhoramento”.
Entretanto, para a infelicidade da comuna e do próprio jornal, nem a reforma e muito menos a grandiosa obra tomaram forma. A degradação do local continuou a afrontar a estética do entorno. O flâneur relata a impressão de um amigo seu, ausente da cidade há vários anos: “mostrou-se ele encantado, fazendo elogiosas referencias às inúmeras indústrias, ao grande comércio, às avultadas e lindas construções, ao elegante jardim da praça fronteira à estação, mas quando deu com os olhos na estação ferroviária, um sorriso de ironia bem disse sua impressão”.
Vários anos passaram e nunca a cidade se acostumou com a idéia de ter na área central tamanha afronta. O apodrecido casebre, que fora trazido pedaço por pedaço da Inglaterra na época do Segundo Império, sempre foi uma preocupação geral. Faltava à estação até uma exigência nas zonas suburbanas – decentes instalações sanitárias: “no pequeno local, ao qual, por escarno, deu-se o nome de gabinete sanitário, a emancipaçãoexcrementária confunde-se com um horrível cheiro de amoníaco, só suportável com o uso de máscaras contra gazes”.
Ainda em 1874, quando os trilhos chegaram à região – “afluiu gente de todos os lados para ver o trem andar sem burros para puxar, voltando impressionada com o que observou” – ironizou-se que a estação jamais seria destruída, pois isto ali algum dia haveria de ser um museu.
Como tal não aconteceu, a cidade conviveu longo tempo com a decadência do local. O flâneur conclui incisivamente “basta assinalar que em dia de chuva somente com guarda-chuva aberto é possível nela permanecer… higiene ali é contrabando”. A substituição do prédio em frangalhos por uma moderna construção sempre ficou somente na promessa. De concreto mesmo foram as reformas esporádicas e superficiais.
Mesmo elas, que não passaram de remendos e pinturas nas paredes ou concerto no piso da plataforma de embarque, não eram vistas com bons olhos, pois uma vez atacadas sabia-se que a substituição do antigo prédio por um novo distanciava-se cada vez mais: “o velho barracão, pior que uma velha atafona de um colono pobre, continuará per omnia secula, seculorum… hay que tener paciencia”.
A par das reformas, a Viação Férrea colocou, na década de 40, cerca de arame farpado ao longo de alguns trechos. Na área central ela se estilhaçara, acabando “com pontas viradas para todos os lados, estado que já deve ter inutilizado muitos trajes dos passeantes do jardim”.
E, se a situação era difícil para os casais românticos, aos jovens e às moças endomingadas que tinham por costume passear na praça, para o trânsito os trilhos da Viação Férrea sempre foram motivo de perigo constante, tamanho o risco de acidentes: “todos conhecem a freqüência com que se repetem os acidentes provocados nos numerosos cruzamentos de ruas com os trilhos”.
Novo Hamburgo desenvolveu-se nos anos 40 e 50 a tal ponto que a estrada de ferro cindiu-a ao meio. De uma vista aérea distinguir-se-ia as duas partes distintas. Assim, se de um lado os acidentes envolvendo trem e veículos particulares tornaram-se freqüentes, por outro a estação continuou a afrontar a estética local. Ela fez pasmar os visitantes, pois contrastou com a evolução do restante da urbe.
A cidade, cuja predestinação foi a marcha célere ao progresso, defrontou-se com uma estação do arco da velha. Alguns cidadãos faziam questão de levar ao local as visitas, para que vissem com os próprios olhos o prédio “com telhados apodrecidos, pedaços de construção caindo, vidros quebrados e paredes cheias de buraco num atestado doloroso de decadência”, isto tudo bem no centro da cidade.
Na década de 60, o discurso contra a estação e os trilhos do trem foi intensificado. Todos acreditavam que a ferrovia havia perdido sua razão de ser, fora superada pelo transporte automotor que, mesmo sendo mais caro, tornou-se preferido diante de sua rapidez, segurança e eficiência. Os trens, ainda puxados pelas “Marias-Fumaça”, e com escassos horários, passaram a trafegar cada vez mais vazios.
Como agravante, atrapalharam o tráfego urbano e a própria expansão da cidade. A imagem da velha estação incrustada em plena área central contrastava com uma Novo Hamburgo metamorfoseada em pseudo-metrópole. O galpão representava a feiúra no cartão de visitas. A velha edificação passou a conviver com modernas edificações.
Em 10 de março de 1966, 90 anos após ser erguida, a estação foi demolida e o tráfego de trens desativado. Ironicamente, o discurso por sua eliminação, visto desde a emancipação, desapareceria de súbito. Em seu lugar veio a nostalgia, como se a estação tivesse um dia representado algo de importante para a comuna. Todos se esqueceram da luta contra sua afronta estética e consubstanciaram sua heroicidade.
O flâneur se espanta com o discurso saudosista, que só lembra daquilo que parecia bom e se esquece das dificuldades e dos problemas da época: “Há pouco ainda se lembrava da velha estação ferroviária que durante anos esteve fazendo parte do cenário do centro da cidade. A história dos trens que passavam diariamente pela cidade trouxe muito desenvolvimento a esta região. Porém, com a evolução e o progresso, o trabalho despendido por aqueles pioneiros, que enfrentaram os maiores contratempos para que os comboios transportando passageiros ou mercadorias pudessem levar sua parcela de colaboração para a região do Vale dos Sinos, foi esquecido, e as máquinas tomaram conta do velho cenário, transformando-o paulatinamente nesta que hoje é indicada como uma das praças mais modernas do interior”.
Para ele, a idéia de tempos melhores do que os atuais passaram a permear o imaginário coletivo. Na época da estação – diria o engraxate – a freguesia era farta: “os passageiros desciam do trem e me procuravam para limpar o pó da viagem”.
Entretanto, em 1981, com a pretensa vinda do Trensurb até a área central da cidade, desenterrou- se a problemática dos trens divisando a urbe. Mesmo com uma estação moderna, com grandes plataformas de embarque, lancherias e bares, e mictórios decentes, a cidade refutou a vinda do trem até o centro. Quem sabe não agüentaria passar por outras tantas décadas tentando se livrar de um estação que se tornaria, ela também, decadente no futuro.