Em 2024 teremos muitas comemorações referentes aos 200 anos da Imigração Alemã. Acho importante registrarmos também os 150 anos da morte de Jacobina Maurer e do massacre dos mucker.
Por 100 anos Jacobina foi um nome proibido e mucker uma conversa apenas sussurrada pelos mais velhos por causa da vergonha e do temor de perseguições. Após décadas de silêncio, aos poucos, foi brotando e surgindo uma nova versão da tragédia que se abateu sobre os “rezadores” que acreditavam em Jacobina Mentz Maurer.
Jacobina Mentz Maurer foi uma mulher corajosa, obstinada e determinada mas também foi uma mulher, física e psicologicamente frágil, que pariu seis filhos entre 1866 e 1874, envolvida num turbilhão de disputas e de interesses socioeconômicos e políticos. Jacobina Maurer e seu marido João Jorge Maurer lideraram um grupo que transformou-se numa pequena comunidade religiosa que, perseguida, isolou-se e radicalizou-se. Acuados, os mucker, se uniram e se defenderam contra as autoridades constituídas a quem haviam inutilmente apelado por proteção.
Entre junho e agosto de 1874 o Exército Imperial e milícias civis incendiaram as casas e assassinaram alguns mucker. Do lado dos militares morreu o Cel. Genuíno Sampaio, comandante das operações e heroi da Guerra do Paraguai. Alguns mucker sobreviveram e fugiram, refugiando-se nas matas do Rio Caí ou no interior da província onde viveram por anos. Outros foram presos e condenados num processo frágil e eivado de irregularidades que se arrastou graças a artifícios ilegais e burocráticos até que, por volta de 1880, uma revisão do processo absolveu e libertou os mucker ainda detidos. Mas da vergonha, do preconceito e das perseguições nunca conseguiram se libertar.
Nas décadas seguintes, ao menos, em dois episódios descendentes dos mucker foram vítimas de ataques e perseguições que resultaram em mortes. Na Fazenda Pirajá, em Nova Petrópolis em 1897, e na Terra dos Bastos, no Vale do Taquarí, em 1898.
Foi preciso um século de silêncio para que o conflito mucker voltasse a ser falado em público. Novas pesquisas e publicações, livros, jornais, revistas, filmes, teatro, documentários e músicas fizeram renascer o interesse pelo assunto.
O avô paterno de Jacobina, Libório Mentz, é outra personagem cuja história, tão ou mais instigante que a de sua neta famosa, permanece no aguardo de um resgate histórico por parte dos pesquisadores e historiadores. O pastor e professor Martin Dreher deu o pontapé inicial no seu livro “A Religião de Jacobina” mas há muito mais para descobrir, pesquisar e divulgar. João Libório Mentz, mestre carpinteiro viveu, no final do século XVIII, na região de Tambach Thürigen na antiga Alemanha pré-unificação uma experiência semelhante a dos mucker. Liderou um grupo de famílias contrárias às mudanças reformadoras no luteranismo e na sociedade como um todo. Nas pesquisas históricas esse grupo era parte de um movimento maior, o Pietismo (por causa do culto a Pietá, a piedade) que manteve-se por várias décadas. Insubmisso às determinações legais, Libório Mentz optou por emigrar para o sul do Brasil buscando liberdade religiosa. O navio que trouxe o idoso Libório Mentz e sua grande família, ao aportar no Rio do Janeiro, recebeu a bordo a visita do imperador D. Pedro I e da Imperatriz Leopoldina. Libório Mentz era portador de uma correspondência do poeta Goethe para a imperatriz e conversou com o casal imperial. Recebeu por determinação imperial o lote número 1 em HamburgerBerg na Colônia Alemã de São Leopoldo.
Há muito por descobrir, pesquisar e contar sobre essa história ocorrida aqui no coração do Vale do Sinos. A prova disso é a existência ainda hoje em dia de fontes primárias inéditas como o manuscrito Vom Katechismus de João Jorge Klein (o “catecismo mucker” como era chamado pejorativamente) redescoberto entre os documentos pessoais do escritor, jornalista e major Leopoldo Petry. Um caderno de estudos, misto de diário de campo e de anotações pessoais do pastor leigo João Jorge Klein, cunhado de Jacobina Maurer, foi a origem e motivação do livro ESCRITOS PERDIDOS: VIDA E OBRA DE UM IMIGRANTE INSURGENTE – JOHANN GEORG KLEIN (1822-1915) dos autores João Biehl e Miqueias Mügge. O livro Escritos Perdidos conta a incrível história de vida de João Jorge Klein, tido como um dos arquitetos da Guerra Mucker. O antropólogo João Biehl e o historiador Miquéias Mügge partem de um “livro misterioso” que Klein iniciou, em 1838, na Alemanha e trouxe para a colônia de São Leopoldo no Brasil. Ao longo de Escritos Perdidos o público terá acesso a tradução do livro transatlântico de João Jorge Klein, o Vom Katechismus e a ampla pesquisa sobre a vida e a obra dessa outra personagem central do episódio mucker.
Me senti realizado como historiador e pesquisador do movimento mucker por ter participado do “resgate” do manuscrito e das tratativas para sua preservação, doação à Universidade de Princepton e publicação do livro. Considerei o lançamento do livro um aceno para o futuro dos personagens reais do passado, um presente na forma de apoio para seguirmos na construção dessa outra versão da mais bela e trágica história acontecida à sombra do morro Ferrabraz.
Por: Gilnei Andrade – Historiador e professor de História