O que vivemos hoje, em 2024, tem muito do que nos foi transmitido, de geração em geração, pelos primeiros imigrantes alemães que chegaram ao Rio Grande do Sul há 200 anos. É o que costumamos chamar de legado deixado por colonizadores que atravessaram o oceano e fincaram raízes no Vale do Sinos e em outras regiões do país.
No capítulo “Primeiros alemães no campo” do livro “Cinco séculos de relações brasileiras e alemãs”, o historiador Martin Dreher enfatiza que a imigração alemã do século XIX trouxe contribuições significativas para a conformação do Brasil independente. A influência na economia, educação, gastronomia, cultura, arquitetura e religião são visíveis.
Além disso, a imigração e a colonização alemã no Brasil tiveram um importante papel nos processos de diversificação da agricultura e na urbanização, além da industrialização, tendo influenciado, em grande parte, a arquitetura e, em suma, a paisagem físico-social brasileira.
No domínio religioso, há de se reconhecer a influência dos pastores, padres e religiosos descendentes de alemães. Várias igrejas luteranas foram implantadas e o próprio ritual católico adquiriu certas especificidades nas comunidades. Veja, a seguir, obras construídas pelos imigrantes e que seguem vivas.
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Da agricultura até a tecnologia de ponta
Segundo o historiador Martin Dreher, a imigração trouxe um novo modelo econômico que se baseia no trabalho do agricultor livre e na pequena propriedade. Atualmente, seguimos com esse modelo bastante presente, em que o fruto do trabalho no campo alimenta não somente a família, mas serve de fonte de renda e independência.
No artigo “A imigração alemã no Rio Grande do Sul”, dos historiadores Isabel Cristina Arendt e Marcos Antônio Witt, e do arquiteto Günter Weimer, eles citam estudos que apontam que em São Leopoldo, entre 1824 e 1845, 60% dos homens eram artesãos, da área metalúrgica, da produção têxtil, do comércio, dentre outros setores. Desse artesanato surgiram pequenas, médias e grandes indústrias.
O relativo enriquecimento das colônias “alemãs” fez surgir uma atividade que seria de fundamental importância no desenvolvimento econômico estadual: o caixeiro viajante. Como representantes dos principais empórios urbanos de importação e exportação, tiveram um papel decisivo na atualização dos métodos produtivos e na elevação do nível cultural nas colônias. Essa interação mostrou o quanto esses profissionais estavam a par das necessidades dos agricultores.
Segundo levantamento do IBGE, a formação de um campesinato típico, com forte herança da Europa Central e significativa contribuição na agricultura familiar no Brasil, é responsável pela criação de determinados animais e pelo cultivo de produtos agrícolas, a exemplo da suinocultura e da triticultura, e pela estruturação de uma forte agroindústria cooperativa e privada.
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História preservada no museu ao calçado
O Museu Nacional do Calçado, em Novo Hamburgo, conta a saga dos primeiros imigrantes alemães que se dedicaram ao manuseio do couro. Daí derivou o trabalho artesanal que produzia botas, chinelos e selas para montaria. As sapatarias e pequenas manufaturas, empregando mestres e aprendizes, acabaram se transformando nas incipientes indústrias do ramo coureiro-calçadista que se espalharam pela cidade.
Algumas empresas criadas por alemães no sul
- Gedore – Empresa de fabricação de ferramentas fundada em 1919 como Gedore Werkzeugfabrik Otto Dowidat KG pelos três irmãos Dowidat, Otto, Karl e Willi, que iniciaram a fabricação de ferramentas manuais para a indústria em sua cidade natal, Remscheid, na Alemanha.
- SAP – É uma empresa alemã, criadora de softwares de gestão de empresas. Ao longo de quatro décadas, a SAP evoluiu de uma empresa pequena e regional na cidade de Walldorf para uma organização de alcance mundial.
- Stihl – Fabricante alemã de motosserras e outros equipamentos manuais, incluindo aparadores e sopradores. Sua sede fica em Waiblingen, em Baden-Württemberg, perto de Stuttgart, na Alemanha. A Stihl foi fundada em 1926 por Andreas Stihl.
- Varig – A criação da uma empresa de transporte aéreo brasileira surgiu na mente de Otto Ernet Meyer Labastille, um alemão de Neider-Marschhacht. Ele emigrou para o Brasil em 1921, onde, em Porto Alegre, abriu a Varig.
Dança e música preservam a cultura
Culturalmente, os imigrantes alemães lançaram as bases de uma infinidade de associações dedicadas ao ensino, canto, teatro e música. Também tiveram um papel importante na formação da cultura brasileira, especialmente no que diz respeito a certos hábitos alimentares, encenações teatrais típicas, corais de igrejas, bandas de música e assim por diante.

Os colonos alemães se adaptaram ao Brasil sem abdicar de sua cultura. Por isso, construíram um novo espaço onde mantiveram o seu próprio estilo de vida, integrando a ele traços da cultura brasileira. Isso resultou no modo de ser singular do colono migrante.
São centenas de grupos de danças germânicas pelo Estado. A prática é de tamanho sucesso que o Festival Internacional do Folclore, sediado em Nova Petrópolis, na Serra gaúcha, realiza neste ano sua 51ª edição. Um dos grupos mais antigos da cidade é o Volkstanzgruppe Freundschaftskreis, que completou 32 anos em julho de 2024.
Trata-se de mais um exemplo da cultura alemã viva celebrando a tradição por décadas de paixão, alegria e amizades proporcionadas pela dança. Mais um pedaço da obra dos imigrantes na região.
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Alemão se aprende em casa e na escola
Entre os idiomas germânicos trazidos ao Brasil por imigrantes, o hunsriqueano é considerado o mais falado. A inclusão do Hunsrik no Google Tradutor em julho deste ano é vista como um reconhecimento para uma língua que carrega a herança cultural e as raízes germânicas.

Apesar de contar com cerca de 2 milhões de falantes nativos no Sul do Brasil, não é o único que embarcou em navios há 200 anos e que se mantém vivo no cotidiano do RS. Atualmente, vários municípios incluem o ensino da língua alemã em escolas das redes pública e privada.
Os imigrantes germânicos foram submetidos a políticas governamentais de segregação linguística na Era Getúlio Vargas (de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954), quando foi proibido o uso dos idiomas germânicos no cotidiano das comunidades. Era época de um projeto educacional nacionalista, que tinha por objetivo fortalecer a identidade nacional.
Todos os imigrantes e seus descendentes em território nacional foram proibidos de falar sua língua em público como uma forma de obrigá-los a se integrar à cultura brasileira.
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Pinceladas da vida na colônia
A arte dialoga com a história do RS. Artistas nos ajudam a compreender a realidade por meio de suas obras reproduzindo mais do que técnica, características, modo de vida, e elementos socioculturais que podem ser encontrados. Confira alguns exemplos de artistas e suas obras inspirados na vida dos imigrantes alemães.
- Hamburgo Velho – Uma das obras mais conhecidas e admiradas de Ernesto Frederico Scheffel, “Hamburgo Velho”, pintada em 1956 e é uma das homenagens de Scheffel à imigração alemã no Vale do Sinos.
- Vendedoras de flores – Episódios, costumes e vida cotidiana estão presentes na obra de Flávio Sch olles. A composição das cenas e cenários remetem para dentro da vida do colono.
- Ariadne Decker – Couro é Arte “Sapatarias”. As características do trabalho industrial coureiro-calçadista da região está presente na obra da artista.
Literatura: veja trechos de obras que retram o passado
Parte da história e da formação das comunidades a partir da chegada dos imigrantes está presente na literatura. Obras, mesmo ficcionais, reconstroem o que foi vivido na época. Confira trechos de algumas obras que bem retratam esse tempo:
- O tempo e o vento – O Continente
Erico Verissimo – “Da amurada do navio, Willy olha a cidade que os casais de açorianos fundaram. Desembarca meio estonteado, de mãos dadas com a mulher: Hänsel e Gretel, coitados, perdidos na floresta. Num batelão com as outras famílias de imigrantes sobem o Rio dos Sinos, de águas barrentas e margens baixas, rio sem história, sem castelos, sem ondinas nem Loreleis. - A ferro e fogo – Tempo de solidão
Josué Guimarães – “Na Brumosa manhã do dia seguinte, domingo, o seleiro Schneider e os outros trataram de voltar aos casebres da extinta Real Feitoria do Linho Cânhamo, no Faxinal da Courita, onde há mais de três meses aguardavam que o governo cumprisse com o que lhes fora prometido na Alemanha: uma colônia de terras de papel passado, alguma ferramenta, sementes e animais domésticos. Enquanto não vinha o pedaço de chão, tratavam de tirar da terra provisória algo que pudesse ser somado ao charque e às aguadas abóboras de Estância Velha, um reduto onde o gado xucro estava sendo agrupado e as últimas sementes podres viravam adubo”. - A História de Walachai de João Benno Wendling
“Até o ano de 1849, a assistência religiosa esteve quase totalmente ausente. Quem necessitava de padre tinha de se dirigir a São Leopoldo. Uma ou outra vez, durante aparecia o pároco de São Leopoldo. Fazia então os batizados, os casamentos a absolvição geral e ouvia a confissão de quem o pudesse fazer e rezava missa, distribuía comunhão a quem o desejasse. Um fato curioso é que o pároco não entendia alemão atender uma confissão individual valia-se de uma lista na qual constavam os principais dizeres em português ou espanhol, e ao lado, respectivamente, em alemão.”
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Casas em estilo enxaimel são lembranças dos imigrantes
A técnica construtiva enxaimel, na qual uma estrutura de madeiras encaixadas tem seus vãos preenchidos com pedras, tijolos ou taipa é uma das obras arquitetônicas dos imigrantes mais conhecidas no país. Na reigão, o Núcleo de Casas Enxaimel, no Buraco do Diabo, como é popularmente conhecido, é um dos pontos turísticos mais visitados de Ivoti com esse estilo de arquitetura.

Vários eventos se realizam no local, que guarda seis casas com estilo enxaimel. Essas construções são montadas através de encaixes de madeira e preenchidas com pedra e barro. Foram erguidas por imigrantes alemães em 1828.
Além disso, alguns prédios no RS são bem conhecidos pela arquitetura e foram projetados por arquiteto alemão. Um deles é Theo Wiederspahn, que nasceu na Alemanha e se mudou para Porto Alegre em 1908, quando já dedicava sua vida à arquitetura.
Dentre seus principais projetos realizados na capital gaúcha estão o Hotel Majestic, atual Casa de Cultura Mário Quintana, o Memorial do Rio Grande do Sul (antigamente sede da Agência Central dos Correios e Telégrafos) e o Edifício Ely. Veja mais detalhes dessas obras:
- Casa de Cultura Mário Quintana
Em 1910, Theo Wiederspahn incumbe-se de projetar um prédio para Horácio Carvalho entre as atuais ruas João Manoel e Bento Martins. Em 1923, ali é inaugurado o Majestic Hotel. Em 1980, começa a história da Casa de Cultura Mário Quintana. - Edifício Ely
Em 1922, para um terreno em frente à antiga Estação Ferroviária, o comerciante Nicolau Ely contratou o arquiteto Theo Wiederspahn para construir um prédio com loja no térreo e salas comerciais nos três pisos superiores. - Prédio dos Correios e Telégrafos
O Espaço Cultural Correios ocupa um belíssimo prédio histórico na Praça da Alfândega, Centro de Porto Alegre. Inaugurado em 1914 e tombado pelo Iphan em 1980, o edifício foi sede dos Correios e hoje abriga também o Memorial do RS.
Imigrantes trouxeram tradições do catolicismo para a região
No campo religioso, além de estabelecer pela primeira vez e de forma definitiva a dissidência religiosa sob a forma do luteranismo, imigrantes trouxeram tradições do catolicismo da Europa central. A Igreja de São José do Herval, em Morro Reuter, foi inaugurada em 1923, e é conhecida também como Igreja de Pedra por ter sido construída em basalto típico da região. Dizem os moradores da localidade que os vitrais foram trazidos da Alemanha de navio.
Os alemães se dispersaram pelo território e entre a população brasileira, marcando fortemente determinadas áreas e influenciando outras. Um traço visível desta expansão é a ampla rede de igrejas luteranas nas frentes de colonização, exemplificando, em parte, a vasta influência germânica no país. Em 1922, havia 375 paróquias das igrejas de Confissão Luterana do Brasil, das quais 237 (63%) se localizavam na região Sul, 64 no Sudeste (31 no ES), 29 no Norte, 26 no Centro-Oeste, 18 no Nordeste.
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União e inovação temperam a gastronomia
Muito além da salsicha, chucrute e joelho de porco, a Alemanha possui uma das gastronomias mais diversas e saborosas do mundo. E, é claro, os descendentes dos imigrantes alemães que chegaram ao RS tratam de preservar o que aprenderam com os antepassados e brindam com um menu variado nos melhores restaurantes do Estado.

Mas nem somente de clássicos germânicos vive a boa gastronomia. A contemporaneidade deu temperos novos sem perder a tradição germânica. Um exemplo é a proprietária da Vovi’s Biscoiteria, Nêmora Meincke. A habilidade na alquimia dos ingredientes ela aprendeu em casa.
Nêmora conta que as férias na casa da avó Zita, em Cunha Porã, cidade do Oeste de Santa Catarina, tinham aroma de cuca saída do forno. Isso porque a avó, que era dentista, recebia os netos com a mesa posta e sabores variados da iguaria.
Filha do pastor luterano Silvio Meincke, era com a mãe, Dorli Bartz, que ela fazia biscoitos para distribuir aos mais próximos. E seguindo os passos da tataravó Ana Maria Jost, que aos 18 anos viajou sozinha da Alemanha para o Brasil, Nêmora, na mesma idade, fez o caminho inverso e, na Alemanha, aprendeu mais técnicas culinárias.
De volta ao Brasil e, por último, a São Leopoldo, abriu a Vovi’s Biscoiteria contando com a participação da mãe, a Vovi que originou o nome do empreendimento. “Trago comigo esse senso de comunidade dos luteranos, do fazer junto e diferente, que é a inovação do povo alemão”, diz Nêmora.
No catálogo da confeitaria há uma forte pitada de contemporaneidade que convive lado a lado com a tradição. São pedaços das obras deixadas na região e no Brasil desde que os primeiros imigrantes desembarcaram em São Leopoldo há 200 anos.
*Reportagem: Daniela Moraes
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