Por: Larissa Brito
Existe uma característica comum no Vale do Sinos e que remete à origem daqueles que há quase 200 anos migraram para a região, estabeleceram suas vidas e fomentaram a economia e a cultura local.
Uma espécie de herança: o orgulho e a capacidade de inovar e empreender diante das adversidades.
Se, originalmente, esse povo veio para a região com o objetivo claro de fortalecer a agricultura e a manufatura, a disponibilidade de alguns recursos e a ausência de tantos outros fez com que os colonos desenvolvessem habilidades e empreendessem em áreas que até hoje são fundamentais para a economia local.
Não importa quanto tempo passe e a economia se modifique, o legado que a indústria coureiro-calçadista deixou na região é valioso e mostra o caminho a seguir.
A necessidade de criar um ecossistema produtivo para a expansão do calçado fez com que a região fortalecesse todo o processo de produção. Todas as fontes ouvidas nessa reportagem especial destacam que o Vale do Sinos conta com capital humano especializado e recursos financeiros. É localizado em uma região com acesso à infraestrutura de comunicação, transporte e logística. E destaca-se, ainda, os laços estabelecidos com o mercado nacional e internacional.
Ouvimos frequentemente que o Vale do Sinos é uma região onde a inovação é pujante, mas se engana quem pensa que esse é um fenômeno recente. Há pelo menos 199 anos existe esse espírito inovador por esses lados. Além de ser berço da colonização, a região também é berço da inovação, do cooperativismo e da indústria criativa. Um lugar que abriga tantas áreas do conhecimento, não pode ser reduzido apenas a um segmento econômico.
Abrigando parques tecnológicos, universidades, escolas técnicas, cooperativas e entidades representativas atentas aos movimentos da economia global, a região fornece os mais variados produtos, serviços e profissionais para inúmeros segmentos.
Hoje, iniciamos um olhar aprofundado para todas as possibilidades que a região vem explorando e para tudo aquilo que ainda pode ser visto com mais atenção. Duzentos anos de história merecem comemoração, mas também representam uma excelente oportunidade de celebrar o passado e projetar o futuro.
Olhando para o futuro através do passado
Em 1824, diante do contexto social que os trabalhadores rurais viviam na região germânica que hoje é compreendida como Alemanha, as promessas do Governo Imperial impulsionaram aquelas pessoas a atravessar o oceano em busca de uma nova vida. De acordo com o pesquisador, historiador e professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Marcos Antônio Witt, migrar era a única opção possível. “Os alemães saem daquele território porque estavam em dificuldades econômicas. Os estragos realizados pelas tropas de Napoleão nas plantações, assim como também a dificuldade de cultivo por causa do clima tornaram a sobrevivência naquele lugar difícil. Essas famílias, na maioria numerosas, se sentiram atraídas pela oferta de terra, sementes, materiais agrícolas e animais”, detalha.
Aqui, o Império tinha alguns objetivos bem definidos. Havia a necessidade de produção agrícola e artesanal para consumo interno e homens que pudessem ser soldados em uma época de muitos conflitos. “Acontece que muitos acordos não foram cumpridos. Principalmente em relação à posse das terras, uma vez que não havia demarcação dos lotes e nem escritura dos terrenos e a distribuição das terras foi realizada de forma desigual”, conta Witt.
Nessa época, o Rio Grande do Sul já tinha uma pecuária forte e essas pessoas que buscavam formas de sobreviver, enxergaram no couro a possibilidade de empreender. Inicialmente era um processo genuinamente artesanal, mas evoluiu até se transformar em pequenas fábricas. Com a chegada do trem à região, em 1874, a distribuição dos itens produzidos ganhou força e seguiu em expansão durante o século 20, tendo seu grande momento durante as décadas de 1960 e 1970. “É uma história de longa duração e que durante muito tempo nos identificou e ainda estamos muito marcados por isso. Atualmente, somos um pouco de tudo isso e esse DNA está presente e essa história ajudará a desenhar o futuro.
Temos que olhar para os exemplos positivos do passado, como o associativismo e o cooperativismo, por exemplo, e pensar nessas práticas exitosas para desenhar os próximos passos.”
Marcos Antônio Witt
Inovação
O espírito vanguardista do Vale segue em ebulição. Os dois parques tecnológicos da região — o Feevale Techpark e o Tecnosinos — abrigam 250 empresas voltadas a práticas inovadoras, de tecnologias e de economia criativa. Através de uma gestão compartilhada entre o conhecimento acadêmico, pesquisa e setor público, as empresas estão em diferentes estágios de maturação, sendo elas incubadas, graduadas, consolidadas, lotes, residentes e âncoras.
Juntos, os dois parques tiveram um faturamento de mais de R$ 1 bilhão em 2022. De acordo com o reitor da Universidade Feevale, Cleber Prodanov, é necessário utilizar a expertise desenvolvida através do calçado e adaptar para novos segmentos. ‘‘Precisamos usar esse ambiente e as habilidades para preparar as pessoas e o mercado para uma demanda que ainda não existe, mas ainda existirá. É preciso ter a visão de que novas cadeias econômicas estão surgindo. São várias, como a cadeia da saúde, as criativas, que englobam o desenvolvimento de games e agências de publicidade. Com isso, parques tecnológicos, universidades e escolas técnicas não têm mais a função de formar apenas mão de obra, mas também construir uma mentalidade empreendedora”, avalia.
Para Silvio Bitencourt da Silva, gestor executivo do Tecnosinos, capacitar pessoas e negócios para essa realidade é um dos principais desafios. “Na perspectiva do Tecnosinos, há necessidade de assegurarmos no contexto dos negócios uma educação de qualidade para muitas pessoas. Além disso, também temos como desafio combinar a pesquisa com as demandas do setor produtivo, gerando soluções que transformem a região e sejam viáveis economicamente”, pontua.
Cleber Prodanov
Os motivos apontados para isso são vários. “Depois da pandemia, as pessoas não querem mais sair de casa para estudar. Acham que é possível aprender as coisas apenas pela Internet, mas quando se deparam com a realidade do mercado, não é bem assim”, salienta, ao chamar também a atenção sobre a dificuldade de logística. “Há uma crise no transporte público. Antigamente, na Liberato, recebíamos alunos de 50 cidades, hoje, são de no máximo 20, que são aquelas onde opera a Trensurb. Não temos mais ônibus”, lamenta.
Conhecimento
Quando falamos em conhecimento, a região é identificada como um polo de formação. Com universidades, escolas técnicas e colégios quase bicentenários, profissionais qualificados são formados e exportados para todas as regiões. Ocorre que, atualmente, o número de profissionais formados por essas instituições não é suficiente para absorver a demanda do mercado. De acordo com o diretor-executivo da Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha, Ramon Fernando Hans, a procura para a formação técnica caiu e atualmente, mesmo as escolas que oferecem preparação gratuita, não conseguem preencher todas as vagas. E os
Ramon acredita que a solução para o cenário passa pelo incentivo à pesquisa e inovação desde o ensino básico. Ele também acredita que os cursos devem ser mais generalistas e com base forte para absorver as constantes mudanças do mercado. “Temos que ensinar os fundamentos: matemática, física, química. A especialização a empresa vai se encarregar de ensinar. Se o aluno sabe os fundamentos, ele consegue aplicar qualquer especificidade.”
Cooperativismo
Ao longo dos últimos 200 anos, o cooperativismo foi fundamental para o fortalecimento econômico, cultural e social da região. Berço da primeira cooperativa de crédito da América Latina, em 1902, a região segue mostrando a importância da modalidade para o crescimento e fomento das comunidades.
Para o presidente do Conselho de Administração da Sicredi Pioneira, Tiago Schmidt, o bicentenário da imigração germânica é uma excelente oportunidade para olhar para o passado e restabelecer relações que foram fundamentais para o desenvolvimento da região. “O bicentenário está trazendo esse novo horizonte e uma oportunidade de reconexão com a Alemanha. A partir disso, olhar para o turismo de uma forma mais sustentável, para as energias renováveis, para as universidades, para a questão do impacto ambiental com uma pegada de carbono mais consciente e, especialmente, para a questão das tecnologias e da educação. Temos maravilhosas escolas e universidades, por que não estabelecer uma parceria com as instituições de lá? É um ganho bilateral”, provoca.
Quando falamos em desafios para o cooperativismo, é preciso repensar a prática pelo viés financeiro voltado às comunidades locais. O modelo mais difundido no Brasil é o assistencial, através de cooperativas de reciclagem e habitacionais. É necessário, no entanto, olhar para o impacto do cooperativismo de crédito, produção e infraestrutura. Só no Rio Grande do Sul, por exemplo, o modelo representa 17,4% do PIB gaúcho. De acordo com Schmidt, isso só será possível através da educação e informação. “Hoje, as pessoas passam por uma faculdade de Economia, de Administração e não estudam o cooperativismo. Nosso grande desafio é levar mais conhecimento. Assim, a sociedade entende que a cooperativa é uma propriedade coletiva, da comunidade. Que tudo que ela construir vai gerar impacto para as novas gerações”, defende.
Tiago Schmidt Presidente
Turismo
Durante muito tempo, quando se falava em turismo na região, era comum que o interlocutor relacionasse o segmento às feiras comerciais e de mercado da região.
O que não deixa de ser uma verdade, visto que as feiras movimentam a economia local e trazem pessoas de vários lugares. Mas o turismo do
Vale do Sinos não se resume a isto. A região tem muitas outras opções para oferecer, que passam pelo turismo rural, balneários, gastronomia, festivais culturais e muitas outras atividades que estão em efervescência.
Um dos destaques fica com a rota Caminhos de Lomba Grande, formada por 13 empreendimentos como restaurantes, espaços para passar o dia, balneários e venda de produtos artesanais. De acordo com Luciana Quaito, turismóloga da Diretoria de Turismo, de Novo Hamburgo, a ideia é que o projeto siga crescendo e que novos empreendimentos passem a integrar a parceria. “O crescimento é algo que os próprios empreendedores já preveem. Quanto maior o número de atrações, maior será o público no lugar. Estamos estruturando um edital para incorporar novos membros e que, após a seleção, passarão por capacitação com o objetivo de qualificar cada vez mais o serviço oferecido.”
Ivoti também tem se destacado no turismo. Atualmente, os eventos são o carro-chefe do segmento.
Indústria Criativa
O conceito de indústria criativa é recente. Foi no fim dos anos 1990 e início dos anos 2000 que ele se consolidou, através do apelo por uma indústria mais limpa e na busca do resgate cultural de alguns países. A ideia se divide em três núcleos: artes e cultura; setores culturais massivos como audiovisual e fotografia; e serviços criativos como publicidade, design, moda e arquitetura.
No entanto, é um município rico culturalmente, tanto nas atividades como em patrimônio. De acordo com a diretora de Turismo de Ivoti, Larissa Mentz, a adesão do público faz com que cada vez mais se pense em iniciativas neste sentido. “Em 2023, Ivoti vem batendo recorde de público em todos os seus eventos. A cultura está sendo cada vez mais consumida. E quanto ao patrimônio, percebe-se sua valorização através das visitações que recebe de todo o Estado. O turismo é um dos maiores geradores de empregos e renda”, afirma.
De acordo com o professor Cristiano Max Pinheiro, coordenador do programa de pós-graduação em Indústria Criativa da Universidade Feevale, o que fez a indústria criativa despontar na região é, justamente, o setor de serviços criativos. “Toda cidade tem sua história de arte pregressa, mas no caso do Vale do Sinos, em função do calçado e da moda, se criam os escritórios de design, as agências de publicidade e o próprio jornalismo ganha força na região por ser uma ambiente economicamente pujante”, avalia.
De acordo com Pinheiro, um dos maiores desafios enfrentados pelo setor é, ironicamente, uma educação empreendedora para esses profissionais. “Precisamos mirar no ensino básico, aqueles jovens que estão nas comunidades. Eles precisam ter uma mentalidade de desenvolver a suas habilidades artísticas, mas pensar também como empreendedores”, defende. De acordo com o professor, existe uma abertura por parte do poder público que vê a importância deste segmento, mas ainda há uma certa dificuldade de consciência coletiva de mercado. um prédio, por exemplo, é MEI”, detalha.
Cristiano Max Pinheiro
Empreendedorismo
Do ponto de vista econômico, o Mito Fundador da região se sustenta em função do empreendedorismo. Como sabemos, a região foi colonizada por germânicos e o desenvolvimento passou por um processo de sobrevivência a partir de uma lógica empreendedora. Atualmente, a região conta com cerca de 60 mil Microempreendedores Individuais (MEIs). De acordo com o gerente regional do SebraeRS, Marco Copetti, essa multiplicação se dá por uma necessidade de mercado. “O desmembramento das cadeias produtivas é um fenômeno que fomenta esse segmento. Principalmente depois da pandemia, muito por conta da perda de oportunidades e também por causa da terceirização. Atualmente, as grandes empresas só gerenciam as marcas. Quem fornece o produto são empresas pequenas. O setor da construção civil também se desmembrou. Hoje, a maioria das pessoas que trabalha na construção de
Todas as cadeias produtivas estão sofrendo transformações que passam por falta de mão de obra, automação, digitalização e novas formas de consumo. De acordo com Copetti, há uma certa resistência da classe empreendedora local para aceitar e se adaptar aos novos modelos de negócios. “O grande desafio é fazer com que nossos empresários entendam que estamos num processo de aceleração de mudança e eles precisam estar conectados a isso. Também é necessário olhar para novos mercados e tornar as empresas mais competitivas, com menor custo, mais agilidade e qualidade. Hoje, é fundamental olhar para a inteligência artificial e automação de processos. Empresas que trabalham com mão de obra repetitiva não irão sobreviver. Não existem mais pessoas disponíveis para realizar este trabalho”, alerta.
Copetti Gerente
Comércio e Indústria
É impossível falar sobre o futuro de qualquer região sem pensar nos segmentos de comércio, indústria e serviços. Em meio à revolução digital, que vinha em ascensão e foi impulsionada pela pandemia, os setores enfrentam muitos desafios. De acordo com o presidente da Associação Comercial, Industrial, de Serviços e Tecnologia de São Leopoldo (ACIST-SL), Felipe Feldmann, uma das principais necessidades é olhar a região como um todo. “Nosso grande desafio é termos um projeto único para o desenvolvimento da região, onde os poderes público e privado possam criar ações que auxiliem a todos, como obras de infraestrutura que permitam o trânsito de pessoas e de mercadorias com segurança e eficiência, políticas para a capacitação de jovens para o mercado de trabalho, uma vez que há grande dificuldade de contratação de pessoas qualificadas em áreas intermediárias nas empresas”, pontua. Para o presidente da Associação Comercial, Industrial e de Serviços de Novo Hamburgo, Campo Bom, Estância Velha e Dois Irmãos (ACI-NH/CB/EV/DI), Diogo Leuck, o futuro é de dificuldades para os negócios, mas com expansão do setor de serviços. “A diferenciação de produtos e serviços é condição essencial para a manutenção da capacidade competitiva das empresas e da manutenção dos níveis de emprego”, defende. precisaram se adaptar. Mas, a partir da reestruturação do Ministério da Cultura, o setor se movimenta para impulsionar as práticas culturais na região.
Estar na linha de frente é fundamental para um futuro próspero, de acordo com o presidente da Associação Comercial, Industrial e de Serviços de Sapiranga, Araricá e Nova Hartz, Luiz Paulo Grings. “A gente não sabe o que vai acontecer, mas tudo depende das nossas ações. Se queremos gerar negócios e empregos, precisamos não ser omissos. As coisas mudaram e a gente precisa estar atuante. Temos que olhar para a digitalização, redes sociais, e-commerce. Devemos aprender, estar atentos. Buscar apoio no setor público, universidades, entidades representativas”, sugere.
Para o produtor cultural e secretário municipal da Cultura de Novo Hamburgo, Ralfe Cardoso, um dos desafios é ampliar a capacidade de formação técnica e profissional. “É necessário estimular mais interessados em trabalhar nas diversas áreas que não são estritamente artísticas do nosso setor”, defende. Ralfe também destaca que a cultura no Vale do Sinos sempre proporcionou momentos marcantes e manteve as principais agendas vivas, exceto no período da pandemia. Eventos públicos em espaço aberto são tradicionais e vem, a cada ano, com mais potência. Ao mesmo tempo em que espaços como teatros, clubes e salas de exibição de filmes mantém boa circulação de público. “Além disso, há uma efervescência de novos agentes culturais sendo estimulados a partir do fomento público como os provenientes das leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo, como também dos editais do PróCulturaRS. Cabe salientar que municípios como Novo Hamburgo, por exemplo, têm editais com recursos próprios que, nos últimos anos, somam mais de R$ 7 milhões”, destaca.
Cultura
A região sempre teve um segmento cultural forte e definido. Nos últimos anos, sem investimentos expressivos no setor, algumas iniciativas
Cada um desses caminhos apontados nesta primeira reportagem especial serão detalhados em separado nas próximas edições.