Por Aline Pires
Em meu texto de apresentação, publicado na última sexta-feira, 8, falei sobre a importância de conhecermos novos autores. E as redes sociais são excelentes formas de isso acontecer. Mas também podemos citar aqui os clubes de leitura e vou falar de uma iniciativa bem bacana, da qual venho participando há três anos: o grupo Leia Mulheres Novo Hamburgo, braço de um movimento mundial que busca valorizar as obras escritas por mulheres. Os livros a serem lidos mensalmente são escolhidos por votação e abril contemplou a escritora francesa Annie Ernaux, de quem lemos O Lugar, publicado em 1983 e lançado no Brasil pela editora Fósforo.
Foi uma grata surpresa para mim e quero começar a dar dicas neste espaço com esta sugestão. Um livro de leitura rápida (ele tem pouco mais de 70 páginas) mas de uma intensidade incrível. A autora faz aqui o que chamamos de auto sociobiografia e conta boa parte de sua vida a partir de sua relação com o pai, contextualizando a França na década de 1950, ela mistura o relato de relações familiares, de classes e costumes e traça, por fim, um quadro social da França.
A partir do momento em que vai estudar e forma-se professora, conquistando um diploma, a narradora provoca uma espécie de rompimento com sua família de origem, seus pais eram pessoas simples, humildes, que mantinham uma mercearia com um café, e por ali ela observava a vida.
A culpa por ter se tornado tão diferente dos seus, com ambições e conhecimentos que jamais fariam parte do universo onde foi criada, parece ter sido o gatilho para escrever o livro. Tanto que a epígrafe do livro é: “Arrisco uma explicação: escrever é o último recurso quando se traiu”.
A identificação que a literatura traz
O fato de a narrativa de Annie Ernaux ter como centro da figura paterna já é suficiente para provocar identificação suficiente com qualquer leitor. É o tipo de relação que sempre renderá debates e reflexões, não importa qual o tipo de criação que se teve ou o lugar onde se nasceu. Para mim, não foi diferente, mas posso dizer que em um certo momento tive o que se pode chamar de “identificação reversa”.
Annie parece ter escrito para se redimir do que achava ser culpa, distanciamento ou negação da família e em certo momento de sua escrita confessa estar perdendo “a essência da figura do pai”.
Mas, enquanto ela escreve “talvez eu escreva porque já não tínhamos mais nada para dizer um ao outro”, eu poderia afirmar: escrevo porque não dissemos tudo”. Saudade, pai, de nossas conversas incríveis, dos nossos dias. Meu pai, que faria 79 anos, em 1º de maio, sempre me incentivou e torceu por mim de maneira muito clara, um pouco diferente do pai retratado no livro de Annie. “Talvez seu maior orgulho, ou até mesmo o que justificava a sua existência: que eu fizesse parte de um mundo que o desprezou”, diz Annie, num misto de contradições e dúvidas.
Algumas curiosidades: O Lugar foi o livro que lançou Annie Ernaux no mundo literário e suas duas obras posteriores também chegaram em tom de biografia. Ela escreveu O Lugar em 1967, mais de 20 anos depois da morte de seu pai, a obra já vendeu mais de 950 mil exemplares e foi traduzida para 29 idiomas.
Jornalista (www.temaspreferidos.com.br)