No Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, coletivos como Pretas, Damas do Samba e Aya promovem ações que resgatam identidade, denunciam desigualdades e fortalecem redes de apoio entre mulheres negras.
No final de julho, Novo Hamburgo se tornou palco de encontros potentes para marcar o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Em dois programas especiais do Estação Hamburgo, veiculados nos dias 23 e 24 de julho pela Vale TV, lideranças negras da cidade discutiram a representatividade nos espaços de poder, os desafios da maternidade e da saúde mental, o racismo estrutural, a solidão da mulher negra e a força da arte e do empreendedorismo afro como forma de resistência. Com emoção, vivências e dados, o debate revelou um retrato vivo da realidade de centenas de mulheres no Vale do Sinos.
A solidão que une

Comandado por Rodrigo Steffen, o Estação Hamburgo reuniu figuras como Lana Flores, Letícia Müller, Sandra Regina, Daniele Souza, Danusa Alhandra Silva, Graciele Freitas e Juliana Melo, representantes de diferentes coletivos e projetos sociais. Um dos pontos comuns entre as falas foi a “solidão da mulher negra”, tema do evento promovido pelo Coletivo Pretas no sábado, 26 de julho, na quadra da escola de samba Protegidos.
“É uma solidão que não se trata apenas de afetos, mas da ausência da mulher negra nos espaços de poder, de cultura, de formação, de saúde”, afirmou Sandra Regina, integrante do Coletivo Pretas. A reflexão se estendeu à maternidade solo, à sobrecarga dos cuidados e à invisibilidade em relações interpessoais e profissionais.
Representatividade é urgência
A jornalista e comunicadora institucional Daniele Souza trouxe dados do Atlas da Violência 2025, indicando que 63,6% dos casos de feminicídio no Brasil envolvem mulheres negras. “Essa mulher está nos piores empregos, vive em subempregos, é a que mais sofre violência doméstica e tem menos acesso a direitos. Não é coincidência, é racismo estrutural”, afirmou.
Danusa Alhandra, idealizadora do projeto Damas do Samba, reforçou o peso da centralidade da mulher negra nos cuidados: “Somos a base da pirâmide. E isso adoece. Por isso precisamos de políticas públicas específicas e de espaços de escuta e fortalecimento.”
O cabelo como coroa e resistência
A pauta estética também surgiu com força. Para muitas convidadas, assumir os cabelos crespos ou trançados foi um marco de autoaceitação. “Não é só beleza, é identidade”, disse Graciele Freitas, cabeleireira, trancista e especializada em cabelos afro. Ela relatou que muitas clientes usam tranças discretas para se adaptarem a padrões de empresas que ainda discriminam cabelos naturais.
Letícia Müller, professora de dança, contou como a estética influenciou sua trajetória. “Sempre fui a única negra nas aulas de balé. Me disseram que eu não pertencia. Eu queria ser professora de dança, mas tive que interromper a faculdade por falta de recursos. Arte é resistência, mas não paga contas. E ser negra na arte é ainda mais desafiador.”
Coletivos em ação

Os programas revelaram um ecossistema de resistência em Novo Hamburgo. O Coletivo Pretas, com cerca de 40 integrantes, promove eventos educativos, culturais e de valorização da identidade. Já o projeto Oorun, coordenado por Juliana Melo no bairro Kephas, atua com mães e crianças negras, fortalecendo o orgulho racial desde cedo. “A conferencinha que fizemos mostrou que as crianças querem e precisam falar. Quando elas rimaram sobre seus cabelos, foi lindo. Estavam colocando para fora tudo o que sentem.”
Outro coletivo citado foi a Conexão Aya, que reúne lideranças negras da cidade. “Queremos conectar movimentos e construir políticas públicas mais eficazes”, explicou Daniele. A união entre os coletivos fortalece ações como o Sarau Damas do Samba e a Conferência Ubuntu, realizada com apoio da Aya.
Entre o pertencimento e a exclusão
A história das comunidades negras em Novo Hamburgo também veio à tona. Lana Flores, presidente da escola de samba Protegidos, relatou como os negros que chegaram à cidade fugiram da escravidão em São Leopoldo e se refugiaram em áreas periféricas como Guarani e Lomba Grande. “A cidade é aculturada. Tudo gira em torno da cultura alemã. Somos minoria, mas não podemos parar. O pouco que temos é resistência.”
Essa exclusão histórica impacta até hoje o pertencimento. “Durante muito tempo, ouvi que meu lugar era como empregada doméstica, não na universidade”, contou Letícia. “Estudei dança na UERGS, mas tive que sair por falta de dinheiro para o transporte. O caminho para nós é mais longo. Mas ele existe.”
Arte, saúde e política: intersecções necessárias
Outro ponto debatido foi a importância de abordagens interdisciplinares. Danusa destacou a formação de agentes populares em saúde, promovida pela Rio Cruz, para atuar com mulheres em vulnerabilidade após as enchentes de 2024. “Saúde é muito mais que o posto. É entender o SUS, acessar direitos e fortalecer a comunidade.”
A ocupação de espaços políticos também foi lembrada. Desde a emancipação de Novo Hamburgo, em 1927, apenas um vereador negro foi eleito em Novo Hamburgo. “É preciso reconhecer o racismo institucional e criar políticas de cotas no serviço público”, defendeu Daniele.
“Onde está o comunicador negro da cidade?”
A fala de Letícia, durante o programa, resumiu muito do sentimento coletivo: “Qual é o comunicador negro referência em Novo Hamburgo? Não tem. Porque a gente não se sente pertencente. E pertencimento é tudo. Quando a gente entende que pertence, a gente flui.”
Essa ausência de representatividade não é casual. “As cotas nas universidades não são suficientes. A maioria dos negros está nas periferias, sem acesso a oportunidades”, disse Danusa. “E quando conseguem entrar, enfrentam o racismo no ambiente de trabalho, como eu enfrentei na Secretaria.”
Identidade, luta e esperança
Entre falas emocionadas, dados impactantes e depoimentos pessoais, os dois programas de Estação Hamburgo ofereceram um mosaico da realidade da mulher negra no Vale do Sinos. Uma realidade marcada pela exclusão, mas também pela resistência cotidiana — na arte, na educação, na saúde, no cabelo, na dança, no ativismo, no empreendedorismo e no afeto.
A celebração do 25 de julho se transformou em um manifesto: por visibilidade, por reconhecimento, por políticas públicas, por voz. Um manifesto que ecoa na cidade, nas periferias, nas escolas de samba, nos salões de beleza e nas rodas de conversa. Um grito coletivo: “Nós estamos aqui. E não vamos mais nos calar.”
Clique na imagem abaixo para assistir ao programa Estação Hamburgo de 23 de julho no YouTube:
Clique na imagem abaixo para assistir ao programa Estação Hamburgo de 24 de julho no YouTube:
LEIA TAMBÉM: Dia da Consciência Negra é reivindicação social desde a ditadura
Debates realizados nos dias 23 e 24 de julho de 2025 no programa Estação Hamburgo, apresentado por Rodrigo Steffen.