Todo o episódio que vivemos com as chuvas de 2024 deixará traumas por muito tempo, entre todos os gaúchos, tendo sido atingidos direta ou indiretamente pelas águas. Ou mesmo aqueles que nada sofreram, a não ser emocionalmente. Estamos às vésperas da virada de ano, há mais de meio ano de tudo que vivemos, mas, as dores ainda persistem.
Recentemente estive na inauguração do Espaço Sicredi, um novo formato de agência da Pioneira, esta localizada no bairro Scharlau, em São Leopoldo, uma das áreas mais atingidas pelas cheias, em maio passado. A própria agência ficou por cerca de 30 dias sem atendimento físico, com água a um metro e meio de altura e barcos passando diante de suas portas. Uma dor, um trauma.
Porém, com a reabertura, além da agência tradicional, foi criado esse espaço para integrar a comunidade, possibilitando reuniões, encontros e negociações. No dia da inauguração, teve início uma exposição, do artista Feu Cardoso, Memórias Sedimentadas, onde retratos pintados registram as feições dos sobreviventes das cheias. As pinturas foram criadas com fragmentos de móveis recolhidos nas áreas atingidas, utilizando a lama da destruição para construir imagens.
Pois, durante a cerimônia de lançamento, conversei com Ivandra, moradora do bairro Rio do Sinos, uma das vítimas fotografadas e posteriormente pintada em tela exposta no Espaço Sicredi. E falar com ela assusta, choca, impacta. A forma intensa como ela conta detalhes do que passou dá a sensação de que as chuvas ocorreram na semana passada.
Em instantes, os olhos se enchem de lágrimas e torna-se impossível àquele que escuta também não se emocionar. Os relatos são minuciosos, com gestos dando conta da velocidade que a água subia, surpreendendo aos moradores habituados a alguns pequenos alagamentos, porém…
Porém, foi tudo rápido demais, inclusive a tomada de decisão de abandonar a casa e embarcar em um barco de socorro. Era noite, chovia muito e Ivandra conta a história com olhar fixo, como que olhando para uma tela de cinema, assistindo um filme, filme esse que ela viveu. Os bens materiais se foram, uma moto, um carro, móveis e memórias da casa. Os gatos ficaram acomodados, os cães se foram e dali em diante, por dias, a rotina era retornar a casa para alimentar os felinos. Como entrar em casa ? Fácil, afinal a porta estava escancarada, pela força das chuvas.
A sensação de perder tudo, ela não conseguia explicar, simplesmente dizendo que não esquece de um minuto do sofrimento vivido. Pior, quase todas as noites, o pavor volta, em sonhos diários, onde a embarcação passa, sem resgatar Ivandra e seus familiares, acordando em susto, pela certeza do fim de tudo, sem a fuga.
A sensação de acordar tranquiliza, mas pouco, pois apenas o insucesso da fuga não aconteceu, enquanto que todo o resto do pesadelo foi real.
Como esquecer isso? Como superar? Quanto tempo levará? E assim como Ivandra, quantos milhares vivem essa realidade? Ela, ainda conseguiu voltar para sua casa. Mas, como não pensar em quem perdeu tudo, mesmo, além de perder vidas de familiares, de amigos… O que significa a chuva, para tantos, hoje em dia? Ivandra me disse, que quando pingos mais grossos começam a cair, os grupos de whatsapp começam a pipocar, com os atingidos de maio se comunicando, assustados. Que trauma.
Eu mesmo, dia desses, ao trafegar entre Novo Hamburgo e Dois Irmãos, me vi em meio a um temporal, com árvores balançando ao vento forte, relâmpagos e um forte aguaceiro, com medo. Isso mesmo, me vi assustado, pensando em algo pior, coisa que nunca passara em minha cabeça, acostumado a dirigir, com sol ou chuva, frio ou calor. E meus traumas são absolutamente psicológicos nesta cheia. Nada de perdas.
Então, essa enchente ainda não passou. A água ainda não baixou. O medo e o pânico ainda estão latentes. Cuidemos de todos, ainda. Carinho, cuidados, atenção, ainda são mais que necessários para a Ivandra e tantos outros. O trauma ficará por muito tempo… ou por todo o tempo, possivelmente!