Como fazer as pazes com o rio quando ele vem e leva nossos sonhos, nossas casas, nossos trabalhos e até nossos amores? Como acreditar que é possível refazer a vida quando a força da água pode, novamente, levar tudo que tem diante de si? Se na enchente de 1941 nossos antepassados — alguns ainda vivos — tiveram que ter força para recomeçar, chegou a nossa vez de mostrar que somos um povo que não foge à luta. No entanto, diferente do passado, o que mais pode ser feito para sairmos dessa catástrofe climática melhores do que éramos antes de maio de 2024?
Para o governador Eduardo Leite, são três os eixos que precisamos nos dedicar para que nossas façanhas continuem sendo “modelo à toda terra” e nos coloquem como exemplo de superação — não somente para o restante do país, mas para o mundo. Para ele, as palavras da vez são resiliência, preparação e reconstrução.
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As duas primeiras etapas dizem respeito às medidas a serem tomadas antes dos desastres naturais. Entre elas uma nova urbanização de cidades, o projeto o RIOS (resiliência, inovação e obras para o futuro do RS), investimento em sistema de proteção de cheias e desassoreamento de rios. O tema da preparação compreende a aquisição de sistemas mais modernos e capazes de previsões mais precisas sobre a chegada de desastres naturais.
Entre as ações, inclusive, está a compra de um novo sistema de previsão. Um novo radar meteorológico chegou ao Estado no dia 11 de junho. O equipamento, que será instalado em Montenegro, no Vale do Caí, faz parte de um processo iniciado ainda no ano passado após as enchentes que atingiram os vales do Taquari, Caí e Sinos.
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Outra medida é o investimento em infraestrutura e nos chamados serviços de backup, que são alternativas para estragos que venham a ser causados por novos eventos climáticos. O terceiro eixo do programa pode demandar mais investimentos direto, com reconstrução das estruturas como rodovias, pontes, prédios públicos, escolas e habitações.
Para o economista Harrison Hong, professor de finanças na Universidade Columbia e que esteve no Brasil em meio à catástrofe, é neste momento que os governos precisam lançar os projetos de impacto ambiental.
O especialista detalha que países bem preparados para enfrentar desastres climáticos gastam por volta de 1% do PIB anualmente. “É o que se deve esperar para o Rio Grande do Sul, cerca de 1% do PIB regional deve ser direcionado para prevenção”, sugere.
Hong estima que a perda do PIB gaúcho com a catástrofe será de 1% a 3%. “Ou seja, esse desastre vai arrasar um ano inteiro de crescimento. É bastante difícil encontrar algum investimento mais importante do que a prevenção”, reitera.
De acordo com o Piratini, a enchente de maio deste ano deve se configurar em um dos eventos de maior dano e prejuízo econômico do século, ao lado de eventos com o Furacão Katrina, que assolou parte dos Estados Unidos em 2004.
A estimativa é de um impacto de R$ 60 a R$ 75 bilhões em ativos, com a deterioração de bens de capital; e de R$ 55 a R$ 80 bilhões no PIB do RS no ano, podendo variar de 8% a 12% de queda.
Para que o Rio Grande do Sul consiga se reerguer — economicamente e emocionalmente — são vários os caminhos a percorrer. Desde a reformulação dos diques, a transferência de bairros e até cidades inteiras, o aperfeiçoamento das previsões meteorológicas, a busca por exemplos de outros países e, claro, a preocupação e respeito ao meio ambiente. Nas próximas páginas, confira pontos levantados nesta reportagem especial.
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![Reconstrução do RS passa pela resiliência após catástrofe 1 Operação de resgate enchente maio 2024 helicóptero do Corpo de Bombeiros na Região Metropolitana FOTO LAURO ALVES SECOM](https://valedosinos.org/wp-content/uploads/2024/06/Operacao-de-resgate-enchente-maio-2024-helicoptero-do-Corpo-de-Bombeiros-na-Regiao-Metropolitana-FOTO-LAURO-ALVES-SECOM.jpg)
Eventos extremos e vulnerabilidade: o combo para a catástrofe
Uma catástrofe não é feita apenas pela ação da natureza, do clima ou do acaso. Ela é a junção de vários fatores, sendo que um deles é determinante: a vulnerabilidade de uma região ou de uma comunidade. Para Karina Lima, doutoranda de Climatologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e coordenadora do projeto “O que você faria se soubesse o que eu sei”, é preciso trabalhar para aumentar a resiliência, a fim de diminuir os danos à população e aos ecossistemas.
Em um ano, foram três eventos extremos no Rio Grande do Sul. Nos dias 15 e 16 de junho de 2023, chuvas intensas, acompanhadas de fortes ventos, deixaram um rastro de destruição no litoral norte e inundaram, como nunca antes se tinha visto até então, algumas cidades do Estado.
Na época, o episódio foi classificado como um dos maiores desastres climáticos do Estado. Foram dois milhões de gaúchos afetados, com 3,2 mil desabrigados e 4,3 mil desalojados e 16 mortes, com 34 cidades com situação de emergência homologada pelo Estado.
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Prevenção passa por diferentes medidas
Diretor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Ufrgs e também coordenador do Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres da universidade, Joel Goldenfum afirma que a redução do impacto de novas enchentes passa por diferentes medidas, de acordo com cada local.
Já ao avaliar o caso das regiões Metropolitana e Vale do Sinos, as ações apontadas por Goldenfum são um pouco diferentes.
“Tem que recuperar o sistema de diques para que ele possa funcionar adequadamente e, também, se reavaliar o sistema, porque ele foi projetado a partir de um histórico que tinha corrido no passado. A frequência no passado representa a probabilidade no futuro. Acontece que os eventos estão se tornando, devido às mudanças climáticas, cada vez mais intensos e cada vez mais frequentes. Isso implica que nós temos que rever, por exemplo, cotas de inundação”, defende o diretor.
Para Goldenfum, esse processo passa por repensar a ocupação das cidades, que cada vez mais precisarão entender a necessidade de ter áreas capazes de serem alagadas sem causar grandes estragos físicos e humanos.
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![Reconstrução do RS passa pela resiliência após catástrofe 2 Enchente vale do sinos maio 2024 foto Giovani Paim Divulgação_3](https://valedosinos.org/wp-content/uploads/2024/06/Enchente-vale-do-sinos-maio-2024-foto-Giovani-Paim-Divulgacao_3.jpg)
Abertura de canal na Lagoa dos Patos é criticada
A abertura de um novo canal ou ampliação do atual na Lagoa dos Patos pode ter um efeito reverso ao desejado, afirma Joel Goldenfum. “Pode causar efeito contrário, porque se a lagoa baixar e o mar subir, ao invés da lagoa mandar água pro mar, o mar pode mandar água para a lagoa. Se tiver um vento sul, ele não vai conseguir funcionar”, explica o diretor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Ufrgs.
Outra crítica do especialista é quanto à possibilidade da utilização de bombas de água ao longo da Lagoa dos Patos.
O assunto foi abordado pelo presidente Lula em uma de suas visitas ao RS em maio, durante as enchentes.
“Nós estamos pensando que vamos discutir um projeto aqui no Rio Grande do Sul para que a gente leve a água do excesso dos rios diretamente para o mar sem encher nenhuma cidade aqui em Porto Alegre”, disse o presidente na passagem por Cruzeiro do Sul, no Vale do Taquari, um dos municípios mais afetados pelas enchentes no Estado.
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Dragagem também requer cuidados
Na avaliação de Joel Goldenfum, a dragagem de rios também precisa ser feita de forma racional. “Simplesmente sair dragando é criminoso de novo. Então vamos, em primeiro lugar, pedir equipamentos para medir o nível do fundo dos rios e dos lagos e lagoas e a partir desse levantamento analisar se existe ou não deposição, quanto que tem depositado, de que maneira se poderia retirar e se essa retirada vai conseguir melhorar o escoamento.”
O diretor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Ufrgs defende que todas as ações exigem um estudo muito detalhado. “Essa é uma ideia que tem surgido de pessoas que não são da área técnica, bem intencionadas, evidentemente, mas elas têm que ouvir os técnicos.”
![Reconstrução do RS passa pela resiliência após catástrofe 3 Resgates enchente São Leopoldo barco foto Thale Ferreira PMSL (2)](https://valedosinos.org/wp-content/uploads/2024/06/Resgates-enchente-Sao-Leopoldo-barco-foto-Thale-Ferreira-PMSL-2.jpg)
Sistema anti-cheias no Caí
Prefeitos do Vale do Caí estão atentos a estudo que trata da prevenção de cheias no Rio Grande do Sul. De acordo com o ministro-chefe da Secretaria Extraordinária de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, Paulo Pimenta, o governo federal irá buscar formas de financiamento para o custeio das obras.
Em São Sebastião do Caí, a projeção é de quatro quilômetros de dique, construídos no bairro Navegantes. Pela proposta, o estudo prevê a construção de diques também em Pareci Novo, um junto à RS-124, quase na divisa com São Sebastião do Caí, e outro na várzea do Bananal, em Pareci Novo.
No entanto, há críticas de quanto esses sistemas poderiam afetar outras cidades localizadas abaixo. Todas as obras previstas consistem de diques de contenção associados a outras estruturas hidráulicas como estações de bombeamento, eclusa e comportas para controle fluxo, que impedem a entrada de águas na área urbana e retiram as águas pluviais do interior das áreas protegidas.
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Governo do Estado quer assumir gestão de diques
O governador Eduardo Leite defende que o Piratini assuma a gestão dos sistemas de proteção contra enchentes. No entanto, para isso, argumenta que vai precisar do aporte de recursos do governo federal.
Na mesma linha, o ministro da Casa Civil, Rui Costa, defende que este tema deva, sim, ficar sob a tutela do Estado. Segundo Leite, desde a extinção do Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), no início dos anos 1990, a gestão de diques e casas de bombas ficou com as prefeituras, mas trata-se de uma tarefa complexa para ser resolvida individualmente. “Não podemos, agora, pensar em soluções isoladas. O que se faz em uma cidade impacta na outra”, argumenta.
Segundo o governador, as melhorias no sistema de proteção vão exigir investimentos bilionários. Como exemplo, ele cita o projeto de construção de um dique em Eldorado do Sul orçado em aproximadamente R$ 500 milhões.
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O exemplo da Holanda
Um grupo de holandeses esteve no Rio Grande do Sul para analisar a situação e propor alternativas ao governo do Estado. Eles atenderam um pedido do Departamento Municipal de Água e Esgotos de Porto Alegre depois da tragédia. Os holandeses fazem parte do programa Redução de Risco de Desastres (Disaster Risk Reduction-DRRS), com sede em Haia, vinculado à Agência Empresarial Holandesa.
A Holanda, ou Países Baixos, é pequena – pouco menor que o Espírito Santo, entretanto é o país mais densamente povoado da Europa, com 17 milhões de habitantes. Um terço de sua área fica abaixo do nível do mar.
A Holanda tem um Ministério da Infraestrutura e Gestão da Água, que investe 7 bilhões de euros por ano em sistemas antienchentes. Há também a figura do “Delta Comissioner”, autoridade dedicada à interlocução entre os diferentes níveis políticos – municípios, províncias e governo central.
No país, há três níveis de proteção: os grandes projetos de engenharia, como o Aft Dique e o Delta Works, iniciativas como o programa Room for the River, permitindo trechos alagáveis no entorno de cidades, e, dentro das áreas urbanas, conceitos como o de cidades-esponjas, que retêm e promove a absorção local da água assim que ela cai do céu, por meio sistemas de açudes, para que não vá toda para o rio principal.
Os cenários econômicos possíveis pós-catástrofe
Para o economista Harrison Hong, professor de finanças na Universidade Columbia, há quatro cenários possíveis para uma região atingida por um desastre natural como o que assolou o Rio Grande do Sul.
O mais otimista, chamado de destruição criativa, considera que nos esforços de reconstrução a região encontra oportunidades novas e, após um breve período de trauma, chega a uma situação melhor do que a anterior.
![Reconstrução do RS passa pela resiliência após catástrofe 4 Carros cobertas água enchente RS maio 2024 Foto Rafa Neddermeyer Agência Brasil (1)](https://valedosinos.org/wp-content/uploads/2024/06/Carros-cobertas-agua-enchente-RS-maio-2024-Foto-Rafa-Neddermeyer-Agencia-Brasil-1.jpg)
O segundo mais otimista, nomeado de “reconstruir melhor”, é autoexplicativo: não se encontram caminhos radicalmente novos, mas o desastre, lá na frente, leva a uma estrutura mais resistente e robusta, com ganhos para a economia e o bem-estar da população. Um terceiro caminho, mais comum, diga-se de passagem, seria o de alguns anos de baque com uma lenta recuperação até um nível bem parecido com o que havia antes da tragédia. Finalmente, o cenário mais pessimista considera que a região, mesmo depois de vários anos, não atinge o nível de riqueza que experimentava antes.
Brilhante pesquisador, Hong veio ao Brasil em maio à catástrofe gaúcha e abordou o tema aproveitando o seu conhecimento em finanças ambientais.
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Uma análise dos dados de cerca de cem países atingidos por ciclones e ondas de calor entre 1980 e 2019 deixa uma pista do que acontece com a economia até quatro anos depois do desastre. Em linhas gerais, temos o terceiro cenário — recuperação até o nível anterior, mas depois de alguns anos de sérias perdas — para o PIB da região. “Isso acontece principalmente porque os investimentos caem”, explica Hong.
Os dados também apontam que regiões que sofreram um evento trágico têm mais chance de viver tudo de novo. Por isso, Hong é direto: “investir em preparação contra desastres climáticos é essencial, mesmo depois que a tragédia já tenha ocorrido”.
O especialista afirma, porém, que o ideal é estar preparado antes. “Mas o nível de consciência de uma sociedade em geral não permite que se façam esses gastos previamente. Tipicamente, as pessoas não prestam muita atenção ao tema a não ser logo depois de desastres. E nem sempre é o primeiro desastre que leva a uma alta percepção do risco”, pontua.